Duas sabedorias.



Istambul é uma cidade singular. É predominantemente muçulmana, mas não tenta impor seus preceitos religiosos aos visitantes de outros credos. Debruça-se sobre a Europa, mas possui vários bairros na Ásia. Nela escutam-se, simultaneamente, a chamada dos muezins para a reza noturna das vinte horas e os acordes das primeiras baladas que começam a pipocar ao longo do estreito de Bósforo - baladas que abrigam no mesmo recinto o chador e o piercing.

A cidade é também um modelo de convivência para este conturbado início de século, em que já tivemos duas guerras ( Afeganistão e Iraque) cuja ignição se deu pela intolerância religiosa - ou, em última análise, pela não aceitação de uma visão de mundo diferente daquela tido como "a correta". Se a finalidade última do Direito Internacional é a obtenção e a manutenção de paz, harmonia e colaboração entre as diversas nações, então o dia-a-dia de Istambul, que tanto fez pelo Direito ocidental, devia ser acompanhado mais de perto.

Quando Roma destroçou-se, invadida por sucessivas hordas selvagens, foi lá que o Direito encontrou abrigo em meio ao tumulto e alvoroço que sacudiu a Europa por quase mil anos. O imperador Justiniano, percebendo a importância de salvaguardar a herança representada por séculos de estudos jurídicos, nomeou uma comissão composta de ministros e jurisconsultos para compilar o que então se entendia por Direito. Do trabalho desta comissão surgiu o Corpus Juris Civilis, de capital importância para um evento que só se daria muito depois: o ressurgimento de um direito codificado que pudesse ser estudado, compreendido e observado pela sociedade civil.

Indo mais além, pode-se afirmar que os três pilares sobre os quais se erige a civilização ocidental (moral judaico-cristã, filosofia grega e direito romano) devem muito de sua preservação à antiga colônia grega de Bizânzio, posteriormente rebatizada de Constantinopla - a Constantinopla tão mencionada nos livros escolares - e que novamente mudou de nome quando da conquista turca de 1453, marco que pôs fim à Idade Média. Não é à toa, portanto, que a moderna Istambul abriga uma basílica que, depois de séculos servindo como catedral e mesquita, encontra-se atualmente dessacralizada - Aya Sofya, a Santa Sabedoria concretizada em uma das maiores realizações arquitetônicas do mundo.

O filósofo John Stuart Mill observou certa vez que existem dois tipos de sabedoria no mundo: uma é sempre crescente, representada pelos avanços tecnológicos e científicos, enquanto que da outra, ligadas às coisas do espírito,"há praticamente uma quantidade igual em todas as épocas". Tive a felicidade de estar em Istambul mês passado, durante o Ramandan muçulmano, juntamente com minha esposa. Tivemos a felicidade de haurir um infinitésimo desta rara sabedoria sob a cúpula de 56m de altura e 1400 anos de Santa Sofia. Por um átimo, tudo pareceu-me como realmente é, infinito.

Não jejuamos, bebemos cerveja nos terraços acalentados pelo verão euro-asiático e ela só cobriu os cabelos ao visitar as mesquitas. Ainda assim fomos bem recebidos em todos os lugares. Sob a cúpula de Santa Sofia, repleta de turistas com netbooks e smartphones, surgiu a idéia para o texto que ora encerro. Não existe lugar mais propício para uma epifania do que aquele monumento ecumênico ao espírito humano, que transcende a religião ou a política. Se o Direito, em seus vários ramos, visa precipuamente a manutenção da paz e o estímulo ao aprimoramento de pessoas individuais e coletivas, a noção do que a cidade significou para o Direito Privado no passado poderá ser uma ponte para uma nova significação do Direito Público, na sua acepção mais ampla, nestes tempos de fronteiras fluidas, corrupção desenfreada e intolerância crescente.

Marcel Citro de Azevedo
Juiz Federal, Diretor Cultural da AJUFERGS



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