Vox Populi, vox dei?



Por Marcel Citro de Azevedo

Sou pai de duas filhas. Como sempre acontece no final de ano, tenho freqüentado muitos eventos sociais, com os tradicionais votos de saúde, felicidade e abundância financeira. Como sempre acontece em dezembro, tenho pensando muito no ano que irá se iniciar, e também no seguinte, e no que o sucederá. Tenho pensado muito, enfim, no porvir.

Nas madrugadas, quando minha filha mais nova reencontra seu sono, e constato, resignado, que o meu perdeu-se entre mamadeiras e filmes infantis, busco refúgio nos livros. Outro dia deparei-me com os versos que John Donne esculpiu em tempos idos: ninguém é uma ilha, estamos todos interligados. A perda de um ser humano - ou a sua perdição - é também a nossa perda, razão pela qual não devemos indagar por quem os sinos dobram: toda a humanidade morre, um pouco, quando uma vida se perde.

E meu pensamento divaga para as tantas vidas em risco, neste Brasil tão vasto e tão desigual, eu que trabalho ao lado de uma vila paupérrima e violenta. E pensando nos votos – não somente nos de saúde e felicidade, mas naqueles que foram desferidos nas ultimas eleições e que possibilitarão que milhares de políticos assumam seus cargos mês que vem – chego à seguinte conclusão: desejo a todos as crianças deste país um futuro permeado de bons políticos, de gestores engajados na promoção do bem comum e na aplicação responsável dos escassos recursos públicos. Políticos que se preocupem menos com demagogia e assistencialismo, canalizando suas energias para o debate responsável dos grandes problemas nacionais; administradores que tratem o dinheiro de todos com a acuidade e a diligência que tratariam o seu próprio (e, obviamente, sem confundi-los); agentes públicos, enfim, que possam promover uma integração entre pessoas e comunidades insuladas pelo abandono, porque parte considerável dos malogros individuais, ou das grandes tragédias coletivas, têm a sua origem no equívoco na formulação de políticas públicas, na sua execução mal intencionada e, principalmente, na simples e absoluta ausência de qualquer ação governamental.

Há algum tempo, contou-me uma médica comunitária que o posto de saúde em que atende está assoberbado de indutores de fertilidade, mas que a toda a hora faltam anticoncepcionais. E os versos de Donne voltaram a soar, retumbantes: estão interligadas as crianças que nascem porque a remessa de pílulas falhou e as que são resultado de complexas operações em sofisticadas clínicas de reprodução assistida. Não se encontrarão nas filas do SUS, nem disputarão vaga nos colégios públicos dos arrabaldes, mas habitam o mesmo tecido urbano, em crescente deterioração. Poderão finalmente encontrar-se numa sinaleira, numa ocasião menos feliz. E, ainda que se construam muralhas e castelos, a visão por detrás de ameias e vidros blindados prosseguirá trazendo fastio e culpa.

E aqui voltamos ao início. Em países como o Brasil, políticos e gestores públicos têm muito mais influência na infelicidade das populações do que nos países desenvolvidos. Há muito se conhece tal verdade. Aristóteles já enunciava a responsabilidade dos políticos pela bem-aventurança das populações, e ainda no século XVIII a Constituição Americana definia a busca da felicidade como um direito inalienável do cidadão. E é por isso que agrego aos tradicionais votos de final de ano uma quimera: o desejo de que os nascidos em 2011 possam ter ao alcance do voto, ao completar dezesseis anos, uma plêiade de candidatos diligentes e honestos, aptos a legislar com coragem e altivez, bem como formular e executar políticas públicas de qualidade.

E que a voz do povo reflita, finalmente, a voz de Deus.



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