A Multa ou a Vida



Final de ano. Época de festas. Celebra-se o Natal e a chegada de 2011. Se há ou não motivo para alegria, cada qual sabe de si próprio. Mas há fatos a serem lamentados por todos, os quais, contudo, invariavelmente se repetem ano a ano. A carnificina no trânsito, agravada neste período, é uma delas.

Mas por que se reproduzem acidentes, sabedores todos nós do que é preciso fazer para evitá-los? Simples. Somos nós motoristas, em sua grande maioria, mal-educados, egoístas e insensatos. Mal-educados porque não respeitamos as regras de trânsito. Por trás do limite de cem quilômetros por hora, numa rodovia qualquer, não se encontra uma comitiva de especialistas comprovando que, superada essa velocidade, os riscos de acidente se multiplicam. Pensamos que alguns burocratas, que nada mais têm a fazer do que encher nossa paciência, resolveram arbitrariamente estabelecer esse patamar. Somos egoístas por que não podemos esperar pelo ingresso do automóvel da faixa ao lado, com a sinaleira ligada há meia hora pedindo passagem. Também por que o pedestre é um chato que não tinha nada que estar atrapalhando o tráfego. Estamos, portanto, autorizados a investir com nosso carro para cima dele. Somos insensatos por que as regras não existem para modular a convivência pacífica no trânsito. Estão lá unicamente para nosso aborrecimento.

Esse cenário foi muito bem apreendido pelo antropólogo Roberto da Matta. As noções patriarcais que norteiam nossas relações sociais também regulam a coexistência no trânsito. Desde que tudo esteja certo conosco, os outros que se lixem. Se a lei não permite tal coisa, sempre há um jeitinho para fazer diferente. Em comparação a mim, embarcado num veículo, o pedestre está abaixo na escala social, portanto tenho privilégios sobre ele. E assim vai.

Vejamos o caso dos “pardais”. Foram dispostos em locais alternados de Porto Alegre, considerados perigosos por autoridades do trânsito. Pareceria claro que o intuito dessa gente é economizar vidas. Mas nossa visão deturpada da utilização do espaço público nos conduz a crer que o objetivo é arrecadar dinheiro para o governo. Puxa vida! Há até um movimento de alguns taxistas – categoria profissional que por excelência deve se portar de forma exemplar no tráfego – protestando em desfavor do controle. Mas olha que sob certo ponto de vista esse movimento até está correto. Já que as regras não são observadas, que se pare com a hipocrisia e se libere geral. Que a selvagem lei da prevalência do mais forte sobre o mais fraco vigore em sua plenitude. Estatísticas sobre acidentes são meros detalhes.

Embora publicamente lamentemos esse morticínio, infelizmente ele se repete por nossa própria responsabilidade. São crônicas repetitivas de mortes anunciadas. Até nos conscientizarmos de que a causa do problema está em nós mesmos. Enquanto isso não ocorre, torçamos pela intervenção de Papai Noel para pelo menos atenuar as tragédias.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Vice-Presidente Cultural e da ESMAFE



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