Não dá nada, não dá nada!



Quem é que já não escutou a expressão acima, vinda de um diálogo entrecortado entre passantes na rua, ou mesmo diretamente, nas palavras de um interlocutor? Ao mostrar desconforto em participar de um esquema de cola em sala de aula, o aluno escuta: não dá nada, não dá nada! Pichadores incitam-se mutuamente dessa forma, antes de galgar prédios e monumentos, para sujar e poluir. Lavadores de dinheiro, fraudadores e criminosos do colarinho branco em geral devem valer-se do dito quando combinam suas tramóias com os famosos laranjas, pessoas humildes que debutam na contravenção. E talvez as palavras tenham sido utilizadas quando ergueram-se edificações em terrenos embargados, junto às encostas de Petrópolis e Teresópolis, nestas tragédias tão pródigas em imagens pungentes e em relatos de omissão.

O ilícito, em qualquer grau e intensidade, faz-se acompanhar pelo bordão – ainda que não verbalizado – no seu planejamento ou execução. Rapidamente, o Brasil está se tornando o país do “não dá nada!”, onde as condutas indesejáveis, das menos nocivas às mais execráveis, tornam-se a regra de convívio. E o tecido social vai se deteriorando, corrompendo-se, comprometendo cada vez mais aquele desiderato que, na atual quadra em que vivemos, soa cada vez mais como uma peça de ficção: “Constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária.” Está lá, no artigo terceiro de nossa Constituição!

O “não dar em nada”, com todas as suas implicações, traz ainda uma dificuldade adicional na área da educação. Como passar os tais “valores” para adolescentes e jovens, em um ambiente de tanta degradação? É fácil imaginar o que passa na cabeça de quem vai estar decidindo e liderando daqui a alguns anos: “por que ser solidário se o fulano preocupa-se apenas com o próprio umbigo e se dá bem? Para que honestidade, se não granjeia dinheiro e status? Por favor, não me falem de virtude, isso não me traz prazer, aqui e agora”.

Li outro dia sobre um salão de cabeleireiro que atendia quase uma centena de pessoas diariamente, pelo seu movimento contábil. A conta de luz, entretanto, não somava quarenta reais. Não, não era o popular “gato” na rede elétrica, era lavagem de dinheiro da droga. Você sabe de algum restaurante sempre às moscas cujos donos vivem numa mansão e viajam ao exterior cinco vezes por ano? De uma revenda de carros que não vende um fusca mas garante uma vida de magnata ao seu proprietário? Se souber, denuncie, ou o “não dar nada” continuará em ação.

Isso mesmo, é preciso denunciar. A maioria silenciosa e honesta está silenciosa demais. A mobilização mínima que já se faz notar é ainda diminuta para fazer frente ao tamanho dos descalabros na gestão da receita e da despesa em nosso país, ainda mais considerando-se a urgência nas obras para a Copa e para as Olimpíadas.

E se não for possível combater os grandes esquemas, que ao menos se dê combate às microcorrupções do dia-a-dia. É a tolerância com as pequenas patifarias do cotidiano que incuba os grandes escândalos. Exigir ética, respeito e honestidade é uma jornada repleta de percalços, mas é também uma rota segura para legar um país melhor aos nossos filhos. E é um caminho que passa necessariamente pela reforma de todas as leis que fortalecem e perpetuam o “não dar em nada”, nos seus mais diversos níveis.

E que passa também por uma reforma de mentalidade. Há ainda, no Brasil, muitas vítimas intelectuais dos “anos de chumbo”, que ainda que tenham escapado sem seqüelas físicas da ditadura militar guardam verdadeira ojeriza a um estado policialesco. Ora, não é preciso colocar-se em um extremo para impedir-se o outro, a virtude sempre se situa nos pontos intermédios, como já escreviam os gregos nos primórdios da ciência política.

Para que o país mude, para que “algo dê em alguma coisa”, é preciso engajamento e coragem de todos os cidadãos.
Marcel Citro de Azevedo é juiz federal
Diretor Cultural da AJUFERGS



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