Chico Buarque e a mulher tatutada



Em uma de suas mais belas canções, Chico Buarque celebra o desejo de ficar no corpo da mulher amada feito tatuagem. Mas como tudo muda vertiginosamente, frente a determinados fatos, incrivelmente é possível afirmar que na verdade o que Chico pretendia era prejudicar seu objeto de adoração. Bastaria que ela fosse candidata à salva-vidas civil no litoral gaúcho.
É, tudo muda vertiginosamente. E já faz tempo que tatuagem não é mais algo exclusivo de presidiário ou de marinheiro de embarcação de contrabando. Se é que em alguma época o foi, pois na verdade essa consideração decorre mais de puro preconceito do que de qualquer outra coisa. Desde tempos imemoriais os homens pintam seus corpos, temporária ou definitivamente, para enaltecer algum motivo, inclusive meramente estético, e atualmente é indesmentível o número cada vez maior de pessoas tatuadas. Sendo assim, qualquer intenção de atribuir aos tatuados alguma depreciação não passa de injustificável estigma.
Por que então o salva-vidas civil não pode ser tatuado? Ninguém é obrigado a gostar de tatuagem, mas será que o não apreciador preferirá morrer afogado a ser salvo pelo tatuado? Pois é, na hora do desespero temos tempo suficiente para escolher quem será o guardião da nossa vida...
O problema é que vivemos de imagens. O colarinho branco com o cofre abarrotado de dinheiro público desviado é cara de respeito. Branquinho, olhos azuis, terno e gravata e sapato importado, esse é intocável. O trabalhador de bermudas, cabelos compridos e tatuado é que não vale nada. Viva a aparência! Tatuagem é sinal de imprestabilidade. Ainda que o critério da honestidade seja empurrado para debaixo do tapete. Então o negócio é o seguinte, vamos parar de desperdiçar dinheiro público e estabelecer novos critérios de concurso para salva-vidas: beleza e simpatia. Não precisa nem saber nadar. E não pode ser tatuado. Basta que o sujeito esteja disposto a sorrir ao filho da madame ou a juntar o coco do cachorrinho com pedigree. Vida de banhista é o que menos interessa.
Mas o pior de tudo é que não está em pauta uma questão estética. Dissequei a Constituição - pressupondo que os meus anos de estudo a ela dedicados não valiam nada - atrás de uma restrição aos tatuados. Nada encontrei. O que a Constituição veda é a natural incompatibilidade entre as exigências para o exercício do cargo público e a impossibilidade de o candidato satisfazê-las. Pensemos. Se o objetivo do salva-vidas está expresso na própria designação do cargo, pressupõe que o candidato saiba e possa nadar. Ao que me consta, não há nenhum estudo sério concluindo que a tatuagem imponha alguma restrição a isso. Por outro lado, alguém que não disponha dos movimentos de braços e pernas, e por essa razão esteja incapacitado de nadar, é que não está apto ao cargo. Não há aqui a discricionariedade tão louvada pelos administradores. Estes não podem ultrapassar os limites estabelecidos pela Constituição.
A questão é tão madura que sequer o Judiciário deve ser convocado para afastar essa infundada restrição. Bastaria ao governador intervir e fazer com que se cumpra a Constituição. Mas seja pela caneta deste ou da de algum juiz prefiro não aguardar pela correção. Minha filha mais velha pediu para colocar um piercing. Demovi-a da idéia. Vai que um dia ela resolva ser salva-vidas...

Gerson Godinho da Costa
Vice-Presidente Cultural e da ESMAFE



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