O leito de Procusto e o processo judicial.



O Direito é um objeto cultural por excelência, recebendo o influxo constante do meio em que atua. No ocidente, comenta-se muito a influência do Direito Romano, mas é inegável o influxo do pensamento grego sobre o ordenamento jurídico, seja de forma indireta, através das concepções que foram assimiladas pelos próprios romanos, seja diretamente, através da obra de Platão e Aristóteles, para citar apenas os expoentes.

No mundo helênico, as normas representavam uma fusão entre o místico e o prático. Antígona, de Sófocles, estabelece uma ponte entre as leis divinas e humanas, e é uma das primeiras incursões no tema do Direito natural. De fato, é gigantesco o impacto dos mitos gregos na cultura ocidental, materializando-se não só na literatura, mas em praticamente todos os ramos do conhecimento, inclusive no Direito.

Bastante pertinente nestes dias de acúmulo de processos, em todas as instâncias, é o mito do leito de Procusto. Tratava-se de um assaltante sanguinário que arrastava os viajantes da província grega da Tessália para seu covil, colocando-as em uma cama de ferro. Em sua perturbação criminosa, exigia que os visitantes coubessem, com perfeição, no leito. Se o tamanho da vítima fosse menor, Procusto valia-se de cordas e roldanas para esticá-la até que atingisse o comprimento da cama. Caso contrário, reduzia-o ao tamanho desejado, decepando-lhe parte das pernas.

Conta a lenda que Procusto foi desafiado e vencido pelo herói Teseu, que o fez passar pelo mesmo suplício, obrigando-o a deitar no seu próprio leito – atravessado, não ao cumprido – o que assegurou um corte definitivo. A narrativa sobreviveu aos séculos, e a expressão “leito de Procusto” chegou aos nossos dias para designar qualquer tipo de padrão aplicado à força sobre determinada realidade.

No âmbito jurídico, a expressão “leito de Procusto” está em voga. Basta uma pesquisa em qualquer ferramenta de busca da Internet para que se constate a grande profusão do termo em artigos jurídicos. Não é para menos: em uma realidade cada vez mais padronizada e massificada, em que muitas peças jurídicas são criadas a partir de mero “print” no teclado, verifica-se, com maior freqüência, uma dissociação entre o mundo dos fatos e as peças processuais que objetivam concretizar a norma, traduzindo a vontade da lei naquele conflito específico.

Não há dúvida de que o mundo dos fatos, à semelhança das vítimas do bandido, por vezes é mutilado, violentamente reduzido às dimensões dos modelos pré-existentes nas memórias dos microprocessadores. O risco é que a eventual composição de lides, ao fim a e ao cabo de um longo processo, acabe resultando em verdadeira abstração, distante do conflito de interesses que originou o exercício do direito de ação. Torna-se um papel padronizado e distante, a ser ignorado pelas partes em conflito, a esta altura já potencializado pelo decurso do tempo.

E o tempo sempre urge (às vezes ruge!), porque Cronos não perdoa sequer a seus filhos! Mas não falemos nele e em seu apetite terrível, pelo menos ainda. Além de Procusto e Cronos, a personagem mítica que também vem me assombrando por estes dias chama-se Sísifo, aquele que rola a mesma pedra eternamente, morro acima...

É preciso dizer mais?

Juiz Federal e Diretor Cultural da AJUFERGS



ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO RIO GRANDE DO SUL
Rua Manoelito de Ornellas, 55, Trend City Center - Torre Corporate, sala 1702, Praia de Belas - Porto Alegre, RS, CEP 90110-230.
(51) 99965-1644
ajufergs@ajufergs.org.br