Leis para tudo



É corriqueira no Brasil a prática de editar leis estabelecendo condutas e procedimentos, ou mesmo estatuindo sanções, para aspectos da vida cotidiana que demandariam soluções distintas àquelas próprias do universo jurídico.

A criminalidade, por exemplo. É um problema concreto que exige ações imediatas que invariavelmente passam longe de novas tipificações, aumento de pena, do limite etário para imputação penal, etc. Mas sempre há alguém de plantão propondo a criminalização de condutas evidentemente insignificantes sob a ótica penal, o aumento ou recrudescimento das sanções – quando não a pena de morte – ou que menores de dezoito anos devam responder penalmente por condutas descritas em normas penais.

Mas também não são raras as medidas legislativas com esse objetivo equivocado em outros ramos do direito. A recentemente aprovada lei que estabelece restrições ao emprego de expressões idiomáticas estrangeiras é uma delas. Creio que ela apresenta dois desacertos.

O primeiro é que o vernáculo está vivo. É produto da cultura de determinado povo, sujeito a constantes reduções ou ampliações. E essas alterações constituem um fenômeno natural, quase que incontrolável especialmente em tempos de amplo acesso à informação. Aliás, o idioma pátrio sequer possui origem autônoma, sendo resultado do influxo de inúmeros outros idiomas, em especial o grego antigo e o latim. Ora, não é por que a lei restringe o uso do termo delivery que as pessoas obrigatoriamente passarão a falar serviço de entrega. Os estrangeirismos são absolutamente normais em qualquer idioma, tanto que um dos métodos mais empregados de ensino de língua estrangeira é o de inicialmente identificar as expressões similares, com idêntica origem, na língua do estudante e no idioma ensinado.

É indiscutível que o propósito da lei é o de refrear o franco empobrecimento tanto da língua portuguesa falada, quanto escrita. Mas essa é uma disfunção que deve ser tratada em outro âmbito, especificamente o educacional. Ou seja, a doença está identificada, o remédio indicado é que não está correto.

E aqui ingressamos no segundo desacerto. A abrangência negativa da lei em questão não se limita à aplicação de uma medida inócua para conter o problema. Extravasa o campo lingüístico que pretende disciplinar e alcança o campo jurídico para contribuir com a noção de que lei no Brasil em regra é para não ser cumprida. Ou seja, reforça o sentimento de que as leis não servem para nada.

Também é preciso sopesar adequadamente a compatibilidade material da lei em comento com a liberdade de expressão, constitucionalmente prevista. Mais, é preciso indagar até onde iria o limite do legislador ao empunhar restrições culturais. Será que dali adiante não será conveniente estreitar o acesso a publicações estrangeiras, a programas norte-americanos, a espetáculos europeus por estarem sufocando a cultura nacional? E se a pretensão é resguardar a cultura – e em específico o idioma –, não seria mais conveniente estimulá-la por intermédio de inúmeros mecanismos disponíveis?

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal Vice-Presidente Cultural e da ESMAFE



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