Um diário do ano da peste



Um diário do ano da peste O diário referido no título acima não se ocupa da crônica destes dias de superlotação nas emergências e de caos nos hospitais, apesar de se amoldar muito bem à recidiva da epidemia de gripe H1N1 que começamos a enfrentar neste ano de 2011. Um diário do ano da peste, de Daniel Defoe, é o minucioso relato do efeito devastador da peste bubônica sobre a Londres de 1665, e uma homenagem as suas estimadas setenta mil vítimas. Não é, entretanto, o único texto célebre produzido sobre estas epidemias que, de tempos em tempos, põe a humanidade de joelhos: em seu Morte em Veneza, publicado em 1912, Thomas Mann impinge ao protagonista um amor atormentado em meio à cidade inundada pela peste asiática. Séculos antes, ao escrever o Decamerão, Giovanni Boccaccio transformou em personagem a própria peste negra, flagelo cujo potencial destrutivo moveu sete moças e três rapazes a isolaram-se em uma propriedade afastada, na Itália do século XIV. Para passar o tempo - e manter a mente afastada de conjecturas sobre a iminência da contaminação - os jovens contavam histórias uns aos outros. Dez histórias cada um, para ser mais exato, formando as cem narrativas que compõem o livro.

Esta idéia é instigante, e merece nossa reflexão: quais seriam as motivações literárias de um grupo às vésperas da morte, no Brasil do século XXI? Em outras palavras, se o vírus da Gripe A sofresse uma mutação que lhe multiplicasse a letalidade e o potencial de transmissão, fazendo com que dez intelectuais buscassem refúgio em algum recôndito lugarejo de nossa serra, sobre o que escreveriam? O sentido da vida? A existência de Deus? O polêmico dispositivo, inserto na recente MP número 527, que veda a publicidade sobre os custos das obras para a Copa do Mundo de 2014? (aqui, impõe-se um parêntesis: não há adjetivo para descrever o descalabro, a amoralidade e a total ausência de espírito republicano desta iniciativa, que sob justificativa de propiciar agilidade ao Regime Diferenciado de Contratações cria ainda mais suspeição sobre o intricado relacionamento entre empreiteiros e políticos.) Impossível prever, mas com certeza alguns dos cem escritos versariam sobre as mazelas e as perplexidades da Saúde Pública, a apropriação de recursos públicos por grupos privados em relação ilícita com o poder, o vírus da corrupção que precedeu e facilitou o vírus gripal ... e por aí afora!

Talvez um destes intelectuais recordasse que, pouco antes da mutação letal, houve gente que aproveitou a oportunidade para defender a idéia de mais um tributo, este sim direcionado integralmente para o custeio da saúde. Um imposto para diminuir as filas nas emergências. Para aquelas situações em que o cidadão, enfrentando suores e dores, e mandado febril para casa sob a justificativa de que o seu caso não seria grave o suficiente, pudesse ao menos receber um kit antiviral. Para impedir que nossos idosos nos deixem antes da hora - poderia bradar um político mais inflamado (mais populista) - e para evitar que as nossas gestantes venham a morrer sem conhecer o rosto dos bebês!

E talvez este intelectual de boa memória (que antes da mutação atuava como médico em um posto de saúde onde faltavam anticoncepcionais para mães de cinco, seis, oito filhos; mas sobravam indutores de fertilidade) viesse a escrever neste seu texto, neste seu testemunho sobre um país doente, assolado por uma epidemia de acontecimentos abjetos, algo que todos nós sabemos, alguma coisa ainda mais clara que a promiscuidade existente entre empreiteiros e políticos, - um fato tão simples que até os vírus sabem: o problema primordial da saúde não é o déficit de receita, mas a corrupção que assola a receita pública e a qualidade da gestão dos recursos que sobram.

Marcel Citro de Azevedo é juiz federal e Diretor Cultural da AJUFERGS



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