Elevadores e civilização



Segunda passada experimentei uma situação limite: cruzava uma rua do centro quando a moto dobrou a esquina e por centímetros não me atropelou. Tive que correr para a calçada, gritando "olha a faixa de segurança!". Pronto, foi o que bastou para que o motoqueiro freasse com força - de repente, toda sua pressa desapareceu - passando a me dirigir palavrões.

Parado estava, e parado fiquei. Não podia avançar em direção a rua para não parecer provocação, tampouco recuar porque ele estava completamente errado. Ficamos os dois ali, nos encarando, eu na calçada e ele exaurindo seu repertório de xingamentos ainda em cima da moto. Medi o tamanho do sujeito: grande, corpulento, cara de bad boy.

Mas não se preocupe o leitor, que essa não é mais uma história de sangue e lágrimas, muito menos a milionésima crônica sobre a falta de educação no trânsito. Não, o que pretendo aqui é chamar a atenção para situações crescentes em nossas urbes, os episódios de retrocesso civilizatório.

Há vários graus de retrocesso, desde situações extremas como o massacre na Noruega até estas pequenas patifarias que amesquinham o cotidiano. Comportamento civilizado significa respeitar os demais membros da sociedade e não importunar estranhos com necessidades estritamente pessoais. É o que nos faz responder "tudo bem" ao cumprimento do vizinho distante no mesmo dia em que perdemos o emprego ou batemos o carro. Comportamento civilizado são convenções, etiqueta, modos, por favor, com licença e obrigado. Civilização, nesse nosso mundo competitivo em que tudo se torna mercadoria, é cada vez mais autocontrole.

O cotidiano civilizado se compõe de inúmeros momentos auto-delimitados, que encontram seu ápice num elevador cheio. Quando a porta se abre, você percebe imediatamente que há gente demais. Será difícil, mas se todo mundo ceder um pouquinho você conseguirá bater o ponto a tempo.

Então, diante de seu olhar suplicante, a mágica começa: o senhor à direita afasta sua valise um pouco mais, o jovem ao lado dele dá um passinho para trás, a mulher à esquerda move-se. Pronto, você pode entrar. Começa a viagem, e ninguém reclama do mal cheiro ou do aperto, das inúmeras paradas ou dos repetidos solavancos. O elevador lotado, muito mais do que um mal necessário, é a metáfora da sociedade: você cede um pouco hoje para que o outro também ceda amanhã, você não incomoda seu vizinho e espera que a recíproca seja verdadeira.

No Brasil de hoje, o temor corrente é que impeçam nossa entrada num elevador semi-vazio. "Preciso de espaço para o meu guarda-chuva", ameaça o homem, apontando o objeto contra nossa testa. "Não subo com estranhos" avisa a moça apressando-se a fechar a porta sobre nossos pés. "Você fede", alguém diz; "Tira o cotovelo da minha barriga", retruca outro. No Brasil de hoje, furtam-se carteiras em elevadores desertos, e constroem-se com dinheiro público ascensores em condomínios horizontais.

Bom, e o epílogo daquele incidente? O leitor que me acompanhou até aqui criou a justa expectativa do final da história, e é razoável e civilizado satisfazê-la: quando o motoqueiro terminou de despejar a raiva - contra mim, contra o mundo, talvez contra si próprio - eu já tinha contemporizado. Era um sujeito humilde, um entregador premido pelo tempo e pelas circunstâncias. Consegui perguntar, calmo: "você ainda acha que tem razão?". Várias pessoas olhavam a cena, aguardando o desfecho - um desfecho que ninguém estaria disposto a impedir. Seguiram longos instantes de silêncio, até que o sujeito pedalou o motor de partida e arrancou sem uma palavra a mais.

Atrasado, corri até o prédio da Andradas, onde me deixaram entrar no elevador apinhado sem caretas ou contestações.

Marcel Citro
Juiz Federal e Diretor Cultural da AJUFERGS



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