Censura e Democracia



Há limites para o conteúdo ou a forma da manifestação artística? Como contemporizar o direito à expressão cultural com os direitos individuais eventualmente atingidos? São indagações a exigir respostas complexas. Ainda assim, é possível palpitar sobre dois fatos recentes, coincidentemente próximos.

Primeiro o filme 'Serbian Film'. Não o assisti e tampouco pretendo fazê-lo, pois as opiniões de alguns críticos confiáveis indicam, pelo menos para mim, que a experiência não passaria de uma desagradável perda de tempo. Não me arrisco a escrever bobagem sobre o que não conheço, apenas pretendo refletir a respeito dos efeitos da proibição de sua exibição pública.

As resenhas descrevem que o filme contém inacreditáveis e escatológicas cenas de estupro de um bebê. Fiquemos por aqui, e acredito que muitos leitores já estarão dispostos a me acompanhar na indisposição de assisti-lo. Penso que o propósito do filme é chocar e, pela exposição do inconcebível, encher os cofres dos seus produtores. Seria mais um trabalho condenado ao seu devido lugar, o esquecimento. Entretanto, a censura conseguiu fazer exatamente o que desejavam os produtores: chamar a atenção para o filme. O que antes passaria, senão a alguns poucos cinéfilos, desconhecido, despertou a curiosidade de alguns com puras intenções mórbidas. E é custoso acreditar que, proibida sua exibição no circuito público, seja impossível acessar o filme, como através da circulação pela pirataria.

A questão a respeito da censura é que não importa o que os críticos tenham escrito ou o que as autoridades responsáveis entendam. Cada qual tem o direito de fazer sua própria avaliação. Segundo lembro de um autor de direito penal, citando uma expressão de outro estudioso, cada um tem o direito de ir para o inferno, desde que pelo caminho não atrapalhe ninguém. Na hipótese, a crítica provou ser inoportuna, julgando ter o dever de influenciar naquilo que o público deve ou não assistir, inapta, pois não impedirá a circulação do filme, e contraproducente, pois estimulou a divulgação.

A censura também pode ser indireta. Não visa coibir a circulação da manifestação, mas calar seu autor, amedrontá-lo. É o que sucedeu com o músico Crocco e seu rap 'Gangue da Matriz'. Há na letra uma crítica incisiva ao aumento de salário dos deputados estaduais. Através da manifestação artística, com inúmeras associações criativas, apenas questiona a conveniência da medida. E, muito ao contrário de 'Serbian Film', é muito interessante, pois resultado de um invulgar exercício tragicômico. Essa manifestação eu assisti. E afirmo que pode valer a pena, ainda que se discorde de algumas colocações. Não a interpreto como ofensiva, bastando compará-la com algumas crônicas, charges e piadas que circulam abertamente, estas sim de caráter ofensivo. Que bom que a repercussão negativa findou por dizimar a pretensão de calar o artista.

Mas enfim, concordemos ou não, censura soa a esqueleto tirado do armário. Numa democracia é preciso ter direito à manifestação e é necessário ter direito de acessar a manifestação. Os dois episódios citados neste texto evidenciam que a sociedade está disposta a discutir o alcance das medidas que visam restringir esses direitos. Isso é muito bom. E isso, paradoxalmente, graças às tentativas de censura. O feitiço voltou-se contra o feiticeiro, a censura parece estar morrendo com o próprio veneno.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Vice-Presidente Cultural e da ESMAFE



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