A desumanidade da pena de morte



Aconselharia a quem acredita que o tratamento de um crime se resolve na aplicação do provérbio "olho por olho, dente por dente" que não lesse este pequeno artigo. Entretanto, pretendo apresentar um argumento que, embora sem ingressar no exame do acerto da máxima bíblica, evidencia o desacerto de sua aplicação. Basta que desconsiderem o parágrafo seguinte, pois trata de obviedades.

A pena de morte revela constantemente sua ineficácia. Sobre o apregoado caráter preventivo geral das penas, não há nenhum dado concreto sobre a diminuição da criminalidade em razão da pena de morte. Pelo contrário, há pesquisas indicando que, onde é ministrada, o cenário do crime é mais violento, quando o criminoso trabalha com a lógica do "matar ou morrer". De outro lado, sequer se cogita de reintegração social para alguém que dali adiante não mais existirá. Em contrapartida, tampouco a pena de prisão assegura a ressocialização, especialmente quando se considera a realidade prisional brasileira ou mesmo os limites e alcance de medidas com esse propósito. Mas pelo menos ainda temos o indivíduo presente, com a perspectiva de respostas antes impensadas. E não deve ser esquecido o caráter seletivo do Direito Penal. Sendo notório que atinge invariavelmente um público alvo, decerto que a pena de morte, enquanto seu consectário, também atenderia a esses critérios velados e inoficiosos.

Mas passemos ao largo dessas considerações e admitamos que a pena de morte seja justificada. Supúnhamos um sujeito que, numa briga, mate um policial, embora não no exercício de suas funções. A morte foi causada por um tiro, mas a arma que o disparou nunca apareceu. De resto, nenhum vestígio, como digitais ou elementos com DNA, foi encontrado. Ainda assim nove testemunhas afirmaram que o acusado foi o autor do homicídio. Parece possível a condenação, certo? Afinal o acusado poderia ter sumido com a arma e eliminado qualquer rastro probatório, e dispomos de várias testemunhas do fato.

Porém, é conveniente enriquecer a hipótese com outras informações. Imaginemos que o acusado seja negro e que a vítima, um homem branco. E que o fato tenha acontecido num estado norte-americano com indesmentível histórico de conflitos raciais e passado escravista. E, o mais decisivo, que ao longo do tempo sete testemunhas se retratem. Agora parece razoável a absolvição, não? No plano das cogitações, é possível imaginar que a arma tenha sumido por obra dos próprios investigadores, interessados em inculpar um homem negro e assim resguardar um branco que haja disparado a arma. Certo, podemos consentir que essa especulação é bastante fantasiosa, mas precisamos admitir que a certeza sobre a autoria do crime, se é que em algum momento ela existiu, evaporou-se. Sendo assim, mesmo os partidários do "olho por olho" reconhecerão que nesse caso não deve ser aplicada a pena de morte.

Pois deixemos de lado essas teorizações e contextualizemos um caso concreto. Por volta das 23 horas do horário local do Estado da Geórgia (aproximadamente meia-noite em Brasília) do dia 21 de setembro foi aplicada uma injeção letal em Troy Davis. A condenação à pena de morte decorreu do suposto homicídio de um policial branco fora de serviço, no já distante ano de 1989. Troy, negro, aguardava sua execução, preso, desde 1991. Ou seja, as circunstâncias descritas no parágrafo anterior não constituem ficção, referem-se ao caso Troy.

Se houvesse consenso universal a respeito da inocência de Troy, isso de nada adiantaria. Ele já não está entre nós. Isso tendo mofado por mais de vinte anos na prisão. E não seria essa pena de prisão suficiente, acaso o consenso fosse de que Troy fora o assassino? Mas tudo indica que Troy era inocente. Se vivo, nada faria com que recuperasse duas décadas perdidas, mas pelo menos sua dor poderia ser amenizada com algum tipo de reparação e a reconquista da liberdade. Hoje, porém, nada mais é possível. Nem mais olhos, nem mais dentes.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal Vice-Presidente Cultural e da ESMAFE



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