Degradação política



Vivemos tempos de desintegração do político. Entenda-se este termo no seu sentido mais amplo, ou seja, como o costume de discussões e escolhas públicas sobre questões com implicações para coletividade. O que tem atualmente permeado os valores da contemporaneidade é quase que em regra o individualismo. Não há tempo, espaço e tampouco vontade para deliberações. O que se apresentam são imposições para satisfação de irrefletidos desejos pessoais. Cuida-se, sem dúvida, de um fenômeno de ampliação universal, mas que em nosso país se apresenta de forma bem mais acentuada.

As implicações dessa liquidez - invocando aqui o lapidar e preciso emprego do termo por Zygmunt Bauman - do político são várias. Passam pelo completo desinteresse do público em geral pela atividade política estatal - aquela exercida por políticos profissionais, formalmente vinculados a partidos e cuja atuação se dá no âmbito e a partir dessas agremiações -, todavia, não se limitam a ela.

É fato que esses políticos - com raras exceções - pouco se atentam às questões públicas gerais, dedicando-se à prevalência de seus interesses pessoais. Porém essa realidade é mais motivo de piada do que inconformidade real com o lamentável cenário. O escândalo de hoje é apenas mais um capítulo dessa novela interminável chamada Brasil. Pouco interessam os resultados, o que releva são os detalhes picantes que circundam a revelação de cada fato censurável. Quantos ainda lembram do caso da ilustre deputada federal flagrada indevidamente recebendo dinheiro, e que só não foi cassada porque o fato ocorrera antes de assumir o cargo de congressista? Esse caso talvez demonstre que nossa desatenção com a política é tão enfática que esses políticos profissionais ultrapassaram o nível da preocupação insincera para agir já no campo da desfaçatez, como assinalou em recente entrevista o filósofo José Arthur Giannotti.

É possível que os políticos façam o que façam por que contam com nossa flagrante omissão. Aliás, mais do que passividade, por parte de alguns há inclusive uma concordância tácita. Respeitar quem, se nós que os elegemos também não nos respeitamos uns aos outros. Desconsideração recíproca essa visível nos espaços de convivência pública. Vamos a alguns exemplos.

Dia desses, um motorista deve ter ficado aturdido com o acionamento da buzina de uma camionete importada que deve valer possivelmente uns cento e cinquenta mil reais - a referência é só uma tentativa de desmistificar a preconceituosa noção de que deseducados são os pobres. Isso porque acessou outra via em frente a essa camionete. Manobra regular com o acionamento do sinal, apenas desagradou o apressado imbecil. Assistindo à cena - e também agredido pela poluição sonora - pensei qual seria a reação do motorista da camionete acaso estivesse no lugar do outro. Pois para minha surpresa o sujeito simplesmente me cortou a frente, sem sequer ligar a seta e saiu em alta velocidade. A segurança e espaço dos outros não interessam, não é? No mesmo dia, aguardando na longa fila de outros veículos para ingressar no estacionamento de um shopping center uma outra camionete simplesmente cortou minha frente, em franco desrespeito a todos os demais "patetas" que se dispunham a educadamente esperar sua vez. Em outra oportunidade, num espetáculo de dança flamenca, um senhor dispara a falar desabaladamente. Devia ter ele pelo menos uns sessenta anos - e a referência é só mais uma tentativa para desmistificar a também preconceituosa noção de que deseducados são os jovens. Pois mesmo diante de insistentes pedidos de silêncio o cidadão prosseguiu obstinadamente com sua incontinência verbal. Ou seja, aqueles que queriam se concentrar no espetáculo que se lixassem.

Pois bem, é possível que os motoristas das camionetes e o idoso verborrágico estejam nessa hora se lambuzando com o novo escândalo semanal, proferindo impropérios em desfavor dos políticos corruptos e se auto-intitulando indiscutíveis representantes da moral e dos bons costumes. Fico imaginando se essas pessoas, por um triste acaso da história, fossem projetadas a algum cargo público: não desempenhariam papel idêntico - quiçá pior - do que os políticos têm feito por aí?

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Vice-Presidente Cultural e da ESMAFE



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