E o Direito encontra a literatura!



Nestes tempos de Feira do Livro, em que volumes jurídicos dividem o espaço da praça com obras ficcionais de todos os gêneros, torna-se ainda mais evidente a conexão entre a ciência do direito e a arte literária: de fato, sendo a literatura o encontro entre a vida "vivida" e a vida "sonhada", é pródiga na oferta de proposições, conceitos e idéias aptos a tornarem-se premissas válidas a solucionarem um caso levado aos tribunais.

Não é difícil imaginar quantas gerações de julgadores foram inspirados, frente a uma determinada situação a eles submetida, pelo conteúdo do Velho Testamento, aqui entendido em sua acepção puramente literária - uma antologia de lendas, histórias, poemas, relatos de episódios e profecias compilados pelos antigos israelitas por mais de mil anos, antes de sua consolidação em um texto único. Ou pelos poemas épicos A Illíada e A Odisséia, pedras basilares da cultura grega e da própria civilização ocidental, cujos estudos mais recentes têm indicado constituírem-se compilações do trabalho de vários poetas, em uma época em que direito, mito e religião perfaziam um código de conduta fragmentário e casuístico. Tais poemas, resultado da colisão entre uma civilização recém-alfabetizada e a antiga cultura analfabeta da Ítaca, traduzem uma enorme sabedoria humana, com evidente repercussão no mundo helenístico e no edifício jurídico que nos foi legado pelos romanos.

E, para ficar nas cercanias do Egeu, seria possível mensurar o impacto da tragédia Antígona, de Sófocles, no estudo da ciência jurídica? De fato, a discussão que se travou sobre o direito ao sepultamento de Polinices figura no currículo inicial de nove entre cada dez faculdades de direito, sendo difícil conjeturar acerca da influência do ancestral debate que contrapõe o jusnaturalismo ao direito positivo sobre a posteridade. Com efeito, qualquer ilação acerca do alcance do direito à vida ou à liberdade passa, necessariamente, pela definição de sua natureza mais profunda, se imanentes ao ser humano ou estabelecidos pelo ordenamento em que estamos inseridos . Voltando-se para o século XIX, Dostoievski apresentou a anatomia de um crime em sua obra - prima, existindo nas páginas de Crime e Castigo incontáveis lições a serem absorvidas por promotores e advogados na preparação de um júri. Também o direito de família encontra fonte de inspiração e solução nos clássicos: em uma hipotética ação de divórcio intentada pelo Sr. Bovary contra Emma, tendo com causa de pedir o adultério, não se poderia deduzir da obra de Flaubert todos os argumentos da petição inicial? E quanto aos termos da constatação de Emma, defensável seria a tese de erro quanto à pessoa do marido, o opaco Carlos? Quantos juízes já não terão invocado Madame Bovary ao ponderar o justo em um conflito conjugal a eles submetido?

Pode-se afirmar, por fim, que várias páginas seriam necessárias para justificar a influência de apenas três obras de capital influência para o pensar jurídico no século XX: O processo, de Franz Kafka, O Estrangeiro, de Albert Camus, e 1984, de George Orwell. O indivíduo em conflito com o Estado: O estado liberal, o estado policial, o estado burocrático, o estado totalitário, o estado democrático de direito.

Não há dúvida, pois, que a valoração dos fatos da vida será mais ou menos influenciada pela literatura quanto maior ou menor a bagagem cultural do operador de direito. Ler ficção melhora, sim, o argumentar jurídico e a redação forense. Quando adquire uma boa obra em prosa ou poesia, o operador do direito também está ampliando seus horizontes profissionais.

Marcel Citro
Juiz Federal
Vencedor do Prêmio Açorianos de Criação Literária 2010



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