Tudo agora como sempre antes



Há uma idéia generalizada de que o direito é produto de construções humanas que se sucederam ao longo de milênios, que apresenta, portanto, um conteúdo alheio a interesses que não sejam universais, enfim, despido de ideologias. O objetivo único seria alcançar a justiça, por mais vago que seja esse conceito.

Essa idéia, entretanto, está equivocada. O direito é um dos frutos da arena política, e nela nem sempre há composição de interesses e o mais forte logra ser o vencedor. É doloroso, desconfiado leitor, mas é verdade. Alguns exemplos podem comprovar essa desanimada avaliação.

O lamentável instituto da escravidão não foi expurgado tardiamente do sistema jurídico por obra e graça da bondosa princesa Isabel, mas, entre outros motivos, por pressões econômicas advindas do exterior, motivadas pelo objetivo de formar um público apto a consumir a intensa produção decorrente da Revolução Industrial.

Tampouco a retirada das tropas norte-americanas do Iraque resulta da generosidade ianque, mas do desinteresse das empresas habilitadas à “reconstrução” do país invadido e da indústria armamentista – já substancialmente capitalizadas – e da desnecessidade da massiva intervenção geopolítica. Fato é que, embora calcadas numa flagrante mentira, as autoridades responsáveis pela invasão permanecem livres e serelepes, enquanto alguns déspotas de nações miseráveis respondem por crimes internacionais. Obviamente uma responsabilidade não exclui a outra, mas não seriam exigíveis soluções jurídicas internacionais similares? O que vige, na hipótese, é a lei do mais forte.

Pode-se citar ainda o recente caso da indevida intervenção do Poder Executivo no Judiciário. Intervenção sim, ainda que à socapa. A Presidenta da República, dona do cofre e da espada, desconsiderou comando constitucional que assegura a autonomia financeira do Judiciário sob o argumento de que o futuro econômico é incerto. Essa motivação, para quem dispensa um mínimo de atenção ao que está acontecendo, é uma grande falácia. Basta comparar o orçamento do Judiciário com as despesas com a Copa do Mundo. E não se deve esquecer que entre os fatores econômicos tão incensados pelo Executivo encontra-se a inflação, fenômeno que acarreta sensível perda do valor aquisitivo do salário dos servidores públicos e aposentados da Previdência Social. A Constituição determina que haja recomposição anual. Como procede o governo? Simplesmente desconsidera a determinação constitucional. Isso com os tributos protegidos por mecanismos efetivos de correção. Ou seja, ganha o Executivo e perde todo o resto, inclusive o estado democrático de direito. Sem qualquer discussão.

Conquanto óbvio, é preciso atentar que reajuste não se confunde com aumento. Aquele visa assegurar que o sujeito possa comprar duas maçãs ao longo do tempo, ainda que o preço delas varie para mais. O segundo tem por objetivo possibilitar ao sujeito comprar mais que as duas maçãs que adquiria ao longo do tempo. Assim, se não há reajuste, há perda. No caso dos magistrados federais, por exemplo, se alguns anos antes adquiriam duas maçãs, hoje, podem arcar com apenas uma maçã e meia. Por conta do processo inflacionário perderam praticamente um quarto da sua renda. E ainda há quem que, com a maior cara de pau, afirme que a culpa do déficit estatal seja a folha de pagamentos.

O pior é que mesmo se tendo o cuidado, na virada do ano, de comer lentilhas, pular sete ondas, vestir roupas íntimas com as cores indicadas ou qualquer outra coisa que o valha, não deve ser alterada essa realidade. Só se a economia deixar. E olhe lá! Mesmo permitindo, é possível que o butim escorra pelos escaninhos da corrupção, enquanto a maior parcela dos agentes públicos, guiada pela honestidade, permanece alijada de uma remuneração digna e levando a culpa pelos males do Brasil.


Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Vice-Presidente Cultural e da ESMAFE



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