As leis e as salsichas



Nestes dias que antecedem o início das comemorações do 240º aniversário de Porto Alegre é particularmente interessante a comparação das normas vigentes em outras épocas, aqui mesmo neste canto do mundo, com aquilo que se entende por Direito hoje. Partindo do pressuposto de que em toda a sociedade há um Direito (idéia tão antiga que virou até brocardo: ubi societas, ibi jus), pode-se fazer uma investigação do conjunto de regras que vigia na região onde hoje se ergue a capital há mil anos, na época pré-colonização, há duzentos anos, às portas da Independência, há cem anos, na consolidação da República, e atualmente, em março de 2012.

1012: Época de escaramuças entre tupi-guaranis provenientes do norte com descendentes dos grupos de caçadores-coletores que habitavam a região do Delta do Jacuí. Conforme pode ser lido no livro História Ilustrada de Porto Alegre (COSTA, Elmar Bonés. Porto Alegre: Já Editores, 1997) os grupos da tradição tupi-guarani teriam invadido tudo, “com seus tacapes, lanças e flechas, e apavorando o inimigo com seus rituais antropofágicos. Como uma horda bárbara, chegaram às margens do Guaíba entre os séculos IX e X. No caminho, destroçaram os grupos do Planalto gaúcho”.

Também José Otávio Catafesto de Souza, em publicação recente patrocinada pela prefeitura (SOUZA, José Otávio Catafesto de, in Territórios e Povos Originários (des)velados na metrópole de Porto Alegre, Povos Indígenas na Bacia Hidrográfica do Lago Guaíba, Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 2008) assinalou que “Há muitas pistas arqueológicas a demonstrar inúmeras formas de relação interétnica nas áreas de fronteira cultural entre grupos autóctones, incluindo a reciprocidade negativa pelo canibalismo e o rapto de mulheres ou por inter casamentos”.

Canibalismo para subjugar e aterrorizar o adversário, rapto e assassinato. Que lei é esta? A lei do mais forte.

1812: Às vésperas da Independência, por volta de 1820, o naturalista Auguste de Saint-Hilaire empreendeu uma séria de visitas a localidades sul-riograndenses. Particularmente interessante – e cruel – foi o comentário que deixou registrado sobre os donos de uma casa em que se hospedou em uma de suas viagens: O proprietário “é considerado um dos charqueadores mais humanos, no entanto ele e sua mulher só falam a seus escravos com extrema severidade, e estes parecem tremer diante de seus patrões. Há sempre na sala um negrinho de dez a doze anos, que permanece de pé, pronto a ir chamar os outros escravos, a oferecer um copo d”água e a prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz do que esta criança. Não se assenta, nunca sorri, jamais se diverte, passa a vida tristemente apoiado à parede e é, frequentemente, martirizado pelos filhos do patrão. Quando anoitece, o sono o domina, e quando não há ninguém na sala, põe-se de joelhos para poder dormir. Não é esta casa a única onde há este desumano hábito de se ter sempre um negrinho perto de si para dele utilizar-se, quando necessário”. (Saint-Hilaire, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Editora do Senado, 2002)

Que lei é esta? Ainda a do mais forte, indiscutivelmente.

1912: Começa-se a discutir mais fortemente no Brasil a elaboração do Código Civil, que só seria aprovado em 1916. Pelas décadas seguintes, o Código, tão minucioso no tratamento das sucessões, da família e da propriedade, passou a ser conhecido no mundo jurídico como a “lei dos ricos”, enquanto que o Código Penal era “ a lei dos pobres”.

Como diriam os operadores do Direito da época: Quid juris?

2012: Cem anos depois, a pergunta se repete com algumas variações: Que Direito é este que aplicamos hoje? De onde provém? Para onde vai nos levar? Para fazer apenas uma indagação concreta a respeito, porque se extingue a punibilidade por milionária sonegação fraudulenta pelo mero pagamento posterior e não se extingue a pena por furto simples mediante a restituição do objeto furtado? Não se extingue porquê?

As palavras de Von Bismark ainda ecoam no ar: “ leis são como salsichas. É melhor não saber como são feitas”.


Marcel Citro de Azevedo
Juiz Federal
Diretor Cultural da AJUFERGS.



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