O Estado emparedado



Recente episódio de conhecimento público foi emblemático para as teorias que têm informado o inexorável desmantelamento do estado. Envolvendo diretamente os interesses de importante e tradicional clube de futebol e de empreiteira de atuação internacional, e, indiretamente, a sociedade gaúcha, findou com expressões de alívio, ainda que evidente um subliminar cinismo.

Parece ter ficado claro que as instâncias de deliberação política têm sido transferidas a instituições com atuação voltada ao resguardo de interesses particulares. Ao estado, organicamente responsável por fomentar os espaços de deliberação, tem sido relegado o papel de mero coadjuvante na regulação das relações sociais, mesmo quando os interesses em pauta extravasem os limites de meras questões privadas.

Certamente a pressão pública contribuiu para o desenlace positivo, enfim, a realização da obra. Mas até que ponto foi decisiva para determinar a assinatura do contrato é difícil averiguar. Se a empresa fincasse pé na impossibilidade de acerto, ficariam todos, clube, sociedade gaúcha e governos, simplesmente à deriva em pleno rio Guaíba.

Se esse exemplo parecer forçado ao leitor, poderíamos agregar em defesa da tese ora desenvolvida a polêmica acerca da liberação das bebidas alcoólicas nos estádios de futebol, durante a Copa do Mundo. Como a proibição está legislada, o que se cogita é de o estado consentir em abrir uma exceção àquilo que em determinado momento deliberou como certo. Estaria o estado disposto a abrir exceções em outros campos? Se estiver, seria por deliberações políticas da sociedade envolvida, ou por pressões de organismos privados, como, no caso, a Fifa?

Certamente essa não é uma questão exclusivamente brasileira. Esclarecida a inverdade relacionada à existência de armas nucleares em território iraquiano, haveria disposição da sociedade norte-americana de comprar outra guerra? Na hipótese negativa, os interesses dessa sociedade prevaleceriam sobre aqueles da indústria armamentista?

Não é de hoje que interesses privados, ou tampouco interesses não necessariamente particulares, mas vinculados a determinados setores sociais, têm alijado o respeitável público de discussões e deliberações políticas. Esse é um fator histórico atinente a qualquer processo democrático. A diferença é a intensidade com que esses interesses atuam nessas discussões e deliberações.

Esse é o ponto: parece-me que se os interesses dos gaúchos e dos brasileiros fossem de fato os mais importantes nessa balança, respectivamente, tanto construtora quanto Fifa selariam acordos de muito boa vontade. Foi-se o tempo em que a pressão pública, amparada pelo estado, ditava os caminhos e o ritmo das nossas vidas. Antes havia algum espaço, ainda que pequeno. Hoje, estamos emparedados. Ruim sem o estado, pior sem ele. Não está mais do que na hora de repensar esse modelo?

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Vice-Presidente Cultural e da ESMAFE.



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