Livros, ficção e Direito



Sendo o Direito um objeto cultural, encontra-se em íntima relação com outros ramos humanísticos, como a filosofia, a história e a literatura. Em relação a esta última, torna-se cada vez mais evidente a conexão entre a ciência do direito e a arte literária: de fato, sendo a literatura o encontro entre a vida "vivida" e a vida "sonhada", é pródiga na oferta de proposições e idéias aptas a tornarem-se premissas válidas a solucionarem um caso levado aos tribunais.

Não é difícil imaginar quantas gerações de julgadores foram inspirados, frente a uma determinada situação a eles submetida, pelo conteúdo do Velho Testamento, aqui entendido em sua acepção puramente literária - uma antologia de lendas, histórias, poemas, relatos de episódios e profecias compilados pelos antigos israelitas por mais de mil anos, antes de sua consolidação em um texto único. Ou pela trilogia Orestia, de Ésquilo, com suas questões de alta indagação acerca da vingança privada e dos limites morais do julgamento. Não é à toa que, em termos de cultura, somos todos funcionários da civilização grega.

Inspirado por todo este manancial, o operador de Direito sente-se estimulado a produzir algo que transcenda os limites dos processos em que atua. Ao invés de apenas citar terceiros em suas peças, busca compilar as informações doutrinárias e jurisprudenciais num todo atraente, trazendo ao mundo sua visão particular sobre o entrechoque de teses e interesses díspares. Torna-se um autor de livros jurídicos. Assim como uma lide jurídica sempre pressupõe um conflito, não há de se falar em prosa ficcional sem um confronto de interesses. É o que dá a necessária tensão ao relato, e oxigênio ao personagem. Por vezes, tocado pelos dramas ( ou pelas comédias!) com que teve contato em sua atividade, ou por um misterioso sopro interno de origem desconhecida, o operador de Direito ousa ainda mais: ao invés de escrever um livro técnico, compõe poesias, escreve contos, esquadrinha um romance. Quando se dá conta, tem um original na mão e a idéia fixa da publicação na cabeça. Ao chegar a esta hora, tenho uma coisa a dizer a você, escritor de ficção esperançoso: guarde o seu melhor amor para a família, para a labuta jurídica que lhe traz o pão, ou mesmo para o gato. Não se apaixone por sua obra, por mais bela que lhe pareça, nem gaste o seu verbo bradando contra a profusão de títulos estrangeiros que abarrotam as bancas e subtraem o seu espaço. Em economia, não existe almoço grátis, e literatura, em última análise, também é business. Publicam-se autores estrangeiros em detrimento dos locais porque já foram testados e aprovados nos seus países de origem ( basicamente Estados Unidos e Europa Ocidental), e o editor brasileiro prefere investir numa tradução que pode lhe render um novo Dan Brown a garimpar talentos em oficinas literárias ou em sua própria pilha de originais não lidos. Calculam-se riscos, projetam-se ganhos. É o capitalismo.

Para os iniciantes persistentes, sempre existirão as obras coletivas, as edições sob demanda e os concursos literários. A esperança de que um dia alguma porta se abra. E a certeza de que a literatura, como diriam os estancieiros do lado de cá do rio Uruguai, é tal qual uma amante argentina: exigente, vaidosa, imprevisível. Podemos entregar-lhe o corpo, quiçá a mente, mas a alma só deve ser ofertada após claros sinais de reciprocidade.

*juiz federal, diretor cultural da Ajufergs.



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