Procurando Cabelo em Ovo



Não podemos somente acusar o Congresso Nacional de inoperância funcional e de inépcia no combate à corrupção interna. Separado o joio do trigo, alguns dos nossos congressistas são também bastante inventivos. Por exemplo, está sendo gestada na Câmara uma alteração que rasga páginas e páginas de direito constitucional, além de romper com uma construção histórica secular.

Refiro-me à Proposta de Emenda Constitucional n. 03/2011, recentemente aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça. Aliás, é curioso que uma emenda dessa envergadura seja conhecida pelo respeitável público apenas nessa etapa do processo legislativo. Mas tudo bem. Sigamos. Afinal, do que se trata? Cuida-se simplesmente de alteração da Constituição que permitirá ao Congresso Nacional “sustar os atos normativos dos outros poderes que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”.

Inicialmente pode-se pensar que esse dispositivo se limitará às hipóteses em que o Judiciário está constitucionalmente autorizado a legislar, como no caso da edição de regimentos internos. Mas nada obsta, e o propósito sutil da Emenda parece ser esse, que também os atos jurisdicionais, especialmente o de manifesto conteúdo normativo, passem a se submeter ao controle do Legislativo. Ou seja, decisões recentes do Supremo Tribunal Federal, a respeito da possibilidade de interrupção da gestação de feto anencéfalo, ou do Tribunal Superior Eleitoral, visando emprestar maior moralidade aos certames políticos, deverão ser chanceladas pelo Congresso.

Há mecanismos dessa natureza – intervenção do Legislativo no Judiciário – em outros sistemas jurídicos, como o canadense e, com tintas um pouco diversas, o francês. Mas ambos estão baseados em larga experiência histórica. Assim como o sistema brasileiro, grosso modo, pelo menos desde a proclamação da República, tem procurado se espelhar no sistema norte-americano e, mais recentemente, nos tribunais constitucionais europeus. Ambos os modelos resultado de muita reflexão, estudo e construção política. Nenhum foi produto de iluminados que pensam ter descoberto a roda. Ou de melindrados dispostos a qualquer preço por revidar uma decisão que lhe foi contrária.

Há quem sustente que bancadas religiosas estariam subsidiando a reforma por que descontentes com a antes referida decisão do Supremo. Se isso é verdadeiro, estamos autorizados a inferir que, para eles, o estado democrático de direito vale menos que o sinal da cruz e que estado laico é conto da carochinha. O perigo, então, reside menos na reforma do que propriamente nos seus fundamentos.

Outros afirmam que é por que o Judiciário tem se intrometido em questões que caberiam aos legisladores. E de fato, em algumas circunstâncias, está. Mas para isso basta que suas excelências arregacem as mangas e comecem a trabalhar com seriedade. Ou então cogitem de reformas consequentes, como criar mecanismos que no mínimo amenizem a concentração de poderes nos tribunais superiores.

Finalmente tem a versão dos despreocupados. A proposta é inconstitucional porque fere a cláusula que garante a independência e harmonia entre os poderes. Logo, logo o Supremo termina com a fantasia. Pois é aí que reside outro risco. De tolos nossos congressistas não têm nada. Não estarão pretendendo criar uma crise institucional? Frustrando essa aberração, não estaria o Supremo abrindo o flanco para o argumento da intervenção indevida no Legislativo? Examinando essa proposta absurda vê-se que a tese não é tão furada assim. E quem avisa, amigo é, mesmo aquele acusado de ver guampa em cabeça de cavalo.


Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal
Vice-Presidente Cultural e da ESMAFE



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