Transparência: entre formigas e elefantes.



No início do século passado, o juiz da Suprema Corte Louis D. Brandeis afirmou, sobre a necessidade de transparência na sociedade americana, que “a luz do sol é o melhor dos desinfetantes”. Referia-se ao sistema financeiro dos Estados Unidos, que além de opaco era hermético, possibilitando que os financistas de então pudessem escapar ilesos das crises financeiras que acometiam o país de tempos em tempos, enquanto o ônus recaía sobre a classe média.

Ultimamente a frase tem sido repetida com quase virulência pelos defensores da transparência absoluta e ilimitada, a transparência sem “amarras nem peias” aplicável aos servidores públicos. Pelos defensores desta tese, quem trabalha para o Estado deve suportar o ônus de ter publicado na Internet, mês a mês, seu nome e vencimento, seus débitos ( a pensão alimentícia) e seus créditos ( os dez dias de férias que teve que vender para fechar as contas) centavo a centavo. Não importa que tal divulgação possa fazer do funcionário um alvo para seqüestros ou extorsões ( imaginem um servidor publico federal de nível superior que está lotado em uma cidade de médio porte, onde a violência urbana tem crescido vertiginosamente e seus movimentos ficam mais em evidência: a certeza de que haverá oito ou nove mil reais depositados em sua conta-corrente todo o dia 4 de cada mês não o fará a vítima em potencial para um crime oportunista?), ou lhe trazer uma série de constrangimentos na vida familiar ( “como é que o fulano disse que não podia me emprestar o dinheiro do aluguel? Olha só, tá ganhando uma fortuna por mês!” ) ou social ( “quem diria, o sujeito do apartamento 302 – toda aquela pose e esse salarinho”). Não, para os defensores desta tese a mitigação do direito de privacidade seria um ônus do cargo – e toda a problemática daí advinda conseqüência das escolhas do servidor. Para que quis fazer concurso, se poderia empreender ou trabalhar na iniciativa privada? Que fique, então, com o ônus da sua estabilidade!

Ainda que este articulista não comungue deste entendimento, tem sido recorrente entre a população em geral e constitui-se, indubitavelmente, em uma tese defensável. Que se torna ainda mais defensável quando se toma, de forma indevida, situações isoladas de evidente descalabro ( uma ascensorista ganhando dezoito mil; um motorista tirando vinte e cinco mil) como regra geral. Caso a tese em evidência sagre-se vencedora no debate que ora se instala nas instâncias decisórias do país, deverá ser acatada por todos os agentes públicos, como uma própria decorrência do Estado de Direito que todos nós – trabalhadores publicos e privados – conquistamos ao término de uma trajetória política repleta de percalços.

O ideal, entretanto, é que a transparência também possa ser debatida em um outro contexto: o dos repasses financeiros diretos e indiretos ao setor privado. O quê, o quanto, o como e o porquê das subvenções, financiamentos, aportes e desonerações fiscais que alguns grupos econômicos têm recebido a partir da tão criticada arrecadação tributária nacional.

Sim, o debate sobre a transparência não deve se limitar tão só à divulgação pormenorizada das remunerações dos servidores. No atual momento por que passa o país, não se pode desviar o foco de duas questões importantíssimas: o grande financiamento publico das obras da Copa 2014 e das Olimpíadas de 2016 e a notícia recentemente divulgada, a partir de um estudo encomendada pela Tax Justice Network ( Rede de Justiça Fiscal, em uma tradução livre) de que brasileiros detém a quarta maior fortuna do mundo em paraísos fiscais. De acordo com reportagem publicada neste jornal na edição de 23.07.12, “ os super-ricos brasileiros detêm o equivalente a um terço do PIB em contas off-shore”, ou seja, livres de tributação e de controle pelo Banco Central. Em um momento de flexibilização dos controles para permitir que as obras sejam finalizadas a tempo para os eventos esportivos que colocarão o país sob o escrutínio universal – evitando um vexame gigantesco caso o pais não prepare a infra-estrutura necessária – é preciso ter cuidado para que todo o barulho que se dirige contra “ a caixa-preta” do funcionalismo não sirva de cortina de fumaça para mais uma monumental transferência fraudulenta de recursos públicos para o setor privado. Curto e grosso: apontam-se ametista e turmalinas do vizinho – e por vezes também alguns patacões – para melhor ocultar o contrabando de diamantes.

Duas conclusões surgem daí: é necessário que se preste mais atenção às renúncias fiscais, à percepção de subsídios do Estado e ao destino dos empréstimos milionários que são obtidos junto aos fundos de fomento públicos neste momento sensível que atravessamos. E, com o devido respeito às opiniões em contrário, é desnecessário que se publique na Internet nome e sobrenome de todos os servidores das três esferas para que se apure situações de descontrole administrativo ou lesão aos princípios republicanos. A partir dos valores vinculados a cada matrícula funcional, a Imprensa e os órgãos competentes poderão verificar as situações que fogem a normalidade e identificar seus beneficiários, instando-os a apresentar explicações.

Para concluir: “O documento The Price of offshore revisited”, conforme a reportagem citada “ mostrou que os bilionários brasileiros somaram, até 2010, 520 bilhões de dólares em paraísos fiscais”. O que mostra que, recolocando a afirmação do juiz Brandeis em seu devido contexto, talvez seja hora do país parar de engasgar-se com formigas enquanto engole elefantes.

Marcel Citro de Azevedo é juiz federal e diretor cultural da AJUFERGS.



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