Porto Alegre reconquistada



Nos últimos dias, finalizou-se o trabalho de desconstrução da cidadela às margens do Guaíba. A expressão “acampamento farroupilha” persiste em uso, mas a idéia de um acantonamento de barracas frágeis não mais faz jus ao que se viu e ao que se escutou, em todas as mídias, no mês em que se celebra o gauchismo em prosa, verso e reverso.

Analisando a extensão da área construída, o afluxo de público e o espaço que a data farroupilha ocupou, vê-se que o Vinte de Setembro faz bem para a alma da cidade. Tornou-se, finalmente, popular. Na sua gênese foi, entretanto, um movimento gestado pela elite agrária do sul profundo, e teve um componente tributário de basilar importância: o charque platino, beneficiado com impostos de importação baixos, chegava ao centro do país com preços bem camaradas, tornando-o mais competitivo do que aquele produzido aqui.

Iniciou-se uma revolta que, pouco a pouco, foi absorvendo um ideário tido por progressista. Proclamou-se a república em 11.09.1836 (ainda que o Chefe supremo da revolução, Bento Gonçalves, só tenha sido avisado posteriormente), ofertando-se igualdade e liberdade a todos, inclusive aos escravos negros. Em que pese todo o júbilo que se espalhou pela província, Porto Alegre continuava resistindo ao cerco revolucionário.

Por aqui, o domínio Farroupilha perdurou por apenas nove meses (setembro de 1835 a junho de 1836). Inconformados com a perda inesperada da cidade, os farroupilhas organizaram três sítios consecutivos, visando a sua retomada pela fome, pelas armas, ou pelas epidemias que grassavam entre a população. O General Netto, comandante e mentor do segundo sítio ( maio de 1837 a fevereiro de 1838), ordenou que uma bateria de canhões fosse posicionada no ponto mais alto da Estrada dos Moinhos – atual confluência da Avenida Independência com a Rua Ramiro Barcelos . Na noite de 20 de junho de 1837, petardos sibilavam na noite escura, espalhando pânico e sangue. De acordo com o historiador Sérgio da Costa Franco, em seu livro “ Porto Alegre sitiada” (Editora da Cidade, Porto Alegre, 2011) o bombardeio daquela noite causou nove mortes e um número não contabilizado de feridos. Houve outros enfrentamentos, testando a temperança da população. Computadas as suas três fases, o cerco chegou a 1283 dias .

Terminada a guerra, em 1845, a república rio-grandense foi desfeita. Parte dos escravos negros que combatiam pela causa foi massacrada em Porongos, num episódio que até hoje suscita controvérsia. O General Netto, desgostoso com o desfecho da jovem república, retirou-se para a sua estância no Uruguai, vindo a morrer em terra estrangeira durante a Guerra do Paraguai, duas décadas depois. Bento Gonçalves teve fôlego bem mais curto, encontrando seu destino apenas dois anos depois, em total ostracismo político. Os demais comandantes farroupilhas tiveram mais sorte: o charque platino, razão da guerra, sofreu um aumento de 25% nas suas alíquotas.

Mas o ideário da revolução era sedutor demais para ser esquecido. Já em meados da década de 1860 uma racha no Partido Liberal levou à formação do Partido Liberal Histórico, que levantando a “bandeira da descentralização administrativa e da representação das minorias, propunha-se defender os mais legítimos anseios de 35 – a “epopeia farroupilha” (conforme Sandra Jatahy Pesavento, em Historia do Rio Grande do Sul, 7ª edição, Mercado Aberto, 1994). Com a fundação do Partido Republicano Rio Grandense, em 1882, a causa revolucionária pouco a pouco foi sendo absorvida pelo discurso oficial. O Palácio do Governo virou “Piratini”, a maior área verde da capital recebeu o nome de “Parque Farroupilha”, os “gauchos” anônimos que acompanhavam os chefes nos entrechoques e entreveros daquela guerra sem fim – filhos de portugueses e espanhóis com as índias guaranis fugidas das Missões – acabaram nomeando chimangos e maragatos, colorados e gremistas. O rio-grandense tornou-se gaúcho.

O sangue derramado nas coxilhas do pampa nos legou a bandeira, o hino e uma festa popular em que o mito sobrepõe-se aos fatos. E os farrapos repelidos ao longo dos três cercos sobrevivem brejeiros nas tabuletas azuis que nomeiam praças e ruas, no imaginário dos moradores da capital e nesta grande colméia que viceja entre meados de agosto e o segundo decêndio de setembro na estância da Harmonia. Reconquistados os corações e as mentes dos porto-alegrenses cuja cidade tanto sofreu no passado, seria profícuo que o comitê organizador da festa de 2013 começasse a discutir a inclusão de uma homenagem específica aos que combateram do lado de cá destas trincheiras – integrando-os de forma definitiva ao calendário de comemorações.

* diretor cultural da AJUFERGS (Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul).



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