Não apenas sentenças escrevem os juízes



Roland Barthes, em “Mitologias, menciona diversos signos e suas possíveis interpretações. Uma das que reputo mais interessantes é a da representação cinematográfica dos romanos, na qual “todos se sentem seguros, instalados na tranqüila certeza de um universo sem duplicidade, em que os romanos são romanos pelo mais visível dos signos, o cabelo na testa”.

Pois aos juízes também são atribuídos alguns signos, como a toga, a sisudez, a indiferença, a frieza de sentimentos. O senso comum aponta para a figura do juiz como alguém distante, incólume às emoções, guiado por fórmulas racionais e incontestáveis, não apenas no exercício da função, mas na sua conduta cotidiana.

Signos esses, porém, que não encontram correspondência na realidade, pelo menos enquanto regra. Não será surpresa nenhuma àqueles que militam no foro ou partilham da convivência de juízes, mas certamente o será para aqueles que não privam dessas relações, afirmar que essa visão é completamente equivocada. Juiz é humano. Por trás da imagem de semideus, infelizmente por vezes auto-afirmada, pulsa sangue, como em qualquer outra pessoa. Juiz não é uma máquina de decidir, é alguém contaminado por sua vivência pessoal, por suas relações familiares e sociais, por pautas comunitárias.

Em alguns chega mesmo a assomar certo talento – de resto não reconhecido por conta dos estereótipos que classificam os juízes como desprovidos de sensibilidade – que, colocado em prática, resulta produzir obras de estremado valor em distintas áreas, como na filosofia, na história, nas artes. Nesses casos, ele não é apenas juiz, mas também filósofo, historiador, artista.

Apresento um exemplo emblemático. O juiz federal Roberto Schaan Ferreira está lançando a obra “Por que os ponchos são negros”. O título já evidencia que não se trata de nenhum comentário à lei ou instituto jurídico. É literatura! E literatura no seu mais puro sentido. Seminal, provocativa, inquietante, poética, envolvente. Não se sai incólume da narrativa circular, elíptica, em primeira pessoa, do personagem principal, em seu lúcido solipsismo, pontuada por encantadoras interações, atuais ou recordadas, em cenários ricamente descritos. Vidas que de fato foram, ou que poderiam ter sido. Ao fim da leitura, fica a sensação de que, embora tudo tenha sido revelado, tudo o que resta é silêncio.

Não se apresse o leitor em lançar-me invectivas do tipo: bajulador! Corporativista! Por favor, não meça a qualidade da obra pela minha opinião, mas pelo prêmio que ela ganhou – Açorianos na Categoria Literária em 2011 – e pelos elogios que recebeu de intelectuais da estirpe de Luis Augusto Fischer, Ana Maria Lisboa de Mello, Antonio Hohlfeldt e Jane Tutikian. Não há nada de espetacular em construções como “Nas ruas e calçadas do bairro antigo as árvores haviam recolhido a noite em suas sombras, enquanto o luar se impunha pelos espaços e frestas, soberbo, calmo, quase molhado”? Não é trabalho de um artesão lingüístico frases como “tornei-me habilidoso em intercalar verdades não comprometedoras com mentiras interessantes”? Sob outro viés, com algumas poucas frases, Schaan proporciona um dos relatos mais comoventes sobre a tortura. Mais do que provar a humanidade de um juiz, essa obra é fruto de talento ímpar, quiçá a porta de entrada no universo literário de mais um grande escritor gaúcho (atribuo o advérbio à disposição do Schaan continuar escrevendo).

Como oportunista surge como formiga, não duvido que alguém outra vez grite no meu rosto: se ele tem talento literário, então é mau juiz! Pura especulação, Schaan é magistrado respeitado e dedicado. Redargúi, então, o oportunista: – então não sabe nada de Direito! Outra inverdade, pois se trata de excelente professor na área. Apenas dedica parte do seu tempo livre – que não é muito – a nos brindar com construções narrativas de alta qualidade. Como escreve o autor, “Forjada no comum das experiências, a palavra mal alcança o extraordinário”. No caso do livro, pode até ser que mal alcançaram, mas que lá alcançaram isso é inegável.

No próximo dia 02 de novembro, na Feira do Livro, Roberto Schaan Ferreira estará autografando sua obra, também disponível no estande da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Não deixe de ler. Para reconhecer que por trás de uma toga, bate um coração. Para se emocionar com uma história densa muito bem escrita. Para descobrir por que os ponchos são negros.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal



ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO RIO GRANDE DO SUL
Rua Manoelito de Ornellas, 55, Trend City Center - Torre Corporate, sala 1702, Praia de Belas - Porto Alegre, RS, CEP 90110-230.
(51) 99965-1644
ajufergs@ajufergs.org.br