Três histórinhas helênicas



São três os pilares da civilização ocidental: a Filosofia grega, o Direito Romano e a Moral judaico-cristã. Poderia-se sugerir, ainda a existência de um alicerce comum a todos eles, o Mito.

Seu conteúdo não cabe nos estreitos limites de uma definição ligeira. Essas narrativas de caráter simbólico - presentes no alvorecer de cada cultura - procuravam explicar a realidade numa época em que os recursos científicos quase inexistiam. Ainda que a Filosofia tenha crescido (e a partir dela, a própria Moral e o Direito) vagarosa e gradualmente, como um esforço de racionalizar os próprios mitos, é inegável que os mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma sociedade.

Bastante pertinente nestes dias de acúmulo de processos judiciais é o mito de Procusto. Tratava-se de um assaltante sanguinário que arrastava os viajantes da província grega da Tessália para seu covil, colocando-as em uma cama de ferro. Em sua perturbação criminosa, Procusto exigia que os visitantes coubessem, com perfeição, no leito. Se o tamanho da vítima fosse menor, ele valia-se de cordas e roldanas para esticá-la até que atingisse o comprimento da cama. Caso contrário, reduzia-o ao tamanho desejado, decepando-lhe parte das pernas.

Conta a lenda que Procusto foi desafiado e vencido pelo herói Teseu, que o fez passar pelo mesmo suplício, obrigando-o a deitar no seu próprio leito - atravessado, não ao cumprido - o que assegurou um corte definitivo. A narrativa sobreviveu aos séculos, e a expressão “leito de Procusto” chegou aos nossos dias para designar qualquer tipo de padrão aplicado à força sobre determinada realidade.

Também interessante nesta época de grandes obras para os eventos esportivos de 2014 e 2016 é o mito de Sísifo, sujeito astuto que ludibriou Tânatos, a própria morte. Encarcerado por Zeus no mundo subterrâneo, Sísifo foi condenado a rolar eternamente uma grande pedra de mármore até o cume de uma montanha, apenas para vê-la despencar, sempre, em direção ao ponto de partida. A tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser chamada "Trabalho de Sísifo" - termo adequado para algumas construções monumentais de duvidosa utilidade, ilíquido orçamento e incerto cronograma, que sugam os recursos de uma nação por demais carente em bons serviços de saúde e educação.

Por fim, cabe destacar o mito de Prometeu acorrentado. O titã Prometeu roubou o fogo dos deuses para presenteá-lo aos homens. Como castigo, Hefesto (mais conhecido por seu genérico na mitologia romana, Vulcano) o acorrentou a uma montanha no Cáucaso, onde todo dia uma águia vinha bicar-lhe o fígado. Como este órgão recompunha-se durante a noite (é, de fato, um dos tecidos de melhor poder de regeneração no corpo humano), a reiterada agressão lhe infringia dores atrozes, de onde se originou a hoje esquecida expressão “prometéico sofrimento”.

De fato, vivemos uma civilização da imagem onde cada qual projeta, nas redes sociais, uma versão idealizada de si mesmo. A arena dos relacionamentos torna-se mais complexa, o sentimento de inadequação e o real isolamento emotivo tende a multiplicar a dor moral por todos sentida de tempos em tempos, tornado-a aguda como a investida de uma ave de rapina.

Eis a força do mito, que sempre remanesce: no âmbito jurídico, Procusto sintetiza a realidade massificada em que, através da produção desordenada de incontáveis peças jurídicas sem a análise da lide real, amplia-se a dissociação entre o mundo dos fatos e as peças processuais que objetivam concretizar a norma. No âmbito econômico, Sísifo reina tanto nas construções inacabadas quanto nas inúteis; e no âmbito sociológico, Prometeu acena com a celebridade instantânea, a quimera de ser “popular” numa sociedade que se pauta por valores cambiantes e verdades que se desmancham no ar.

Três mitos helênicos, três historinhas gregas para serem afixadas nos pilares que sustentam o mundo, tal qual conhecido neste Brasil de início de milênio.

*Diretor Cultural da Ajufergs e professor de Direito Tributário na Esmafe/RS



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