O horror, o horror



Enquanto a carruagem passa, os cães ladram. Novos escândalos surgem, sobrepondo-se aos da semana anterior, que por sua vez soterraram os dos meses precedentes, e assim vamos vivendo, de manchete em manchete.

Não obstante esta industriosa linha de montagem de fatos lamentáveis, tão brasileira, ainda ecoa a já célebre declaração do Ministro de Justiça, pela qual seria preferível a morte a uma longa pena em nossos presídios. Também repercute o trágico desfecho do assalto ocorrido em Passo Fundo - o pai da vítima desferiu uma facada no assaltante e potencial estuprador da filha em plena delegacia, matando-o.

Entre o Ministro da Justiça, que prefere morrer a cumprir “muitos anos em uma prisão nossa”, e o sujeito que prefere matar a ver o criminoso ser processado conforme os ritos da nossa lei, desenvolve-se todo o drama que ora assola a sociedade brasileira, seja nos covardes atentados contra policiais, seja nos campos de concentração em que o Brasil do século XXI encarcera seus presos.

Este drama é do cidadão que teme ir à rua, e também do juiz e sua encruzilhada: ou assina o alvará que permite o criminoso voltar ao convívio social, com todos os riscos daí decorrentes; ou o decreto prisional que o enviará para um estabelecimento insalubre e superlotado, onde o homem é o lobo do homem.

É certo que há delitos de pequeno potencial ofensivo, e aí a possibilidade de acompanhar o processo em liberdade é a solução natural, bem como crimes hediondos cujo encarceramento é imperativo. Há, porém, aqueles crimes intermédios, medianos, que habitam a zona gris (deixo de usar o tradicional termo “zona cinzenta” porque o cinza agora é pop!) e tornam o ofício do julgador ainda mais solitário. Lá estará ele sozinho com a sua pena - nos três sentidos possíveis da palavra.

As múltiplas dimensões do drama diário da violência poderiam ser atenuadas se as verbas federais e estaduais para a ampliação e modernização do sistema prisional chegassem com maior rapidez e qualidade ao seu destino. Se o país aprovou um regime diferenciado de contratações para apressar as obras para os eventos esportivos de 2014 e 2016, não poderia também providenciar uma sistemática similar para uma intervenção mais efetiva no campo da violência urbana? Muito mais importantes do que estádios e vias de acesso são presídios que tragam uma potencialidade, ainda que mínima, de ressocialização do apenado. Construções monumentais não substituem as escolas públicas, cujo papel primordial também passou a ser preventivo: com ensino de qualidade e uma boa política de inserção social evita-se que a criança de hoje torne-se o bandido de amanhã.

João Cabral de Melo Neto popularizou a expressão “morte matada” para designar aquele fim apressado pela emboscada, pelo punhal, pela bala perdida, epílogo tão comum nos sertões de outrora quanto nas atuais periferias das grandes cidades. A “morte morrida” que cantou em seus versos passa, gradativamente, a tornar-se privilégio de quem anda em carro blindado ou cercado por seguranças. O que não é o caso deste colunista e nem do leitor, com certeza.

O brasileiro médio não morre mais de fome, como o Severino do genial poema, mas de medo. Medo de sair de casa, medo de chegar em casa, medo de estar em casa. De que a insegurança aumente ainda mais. Medo do vaticínio de outro gênio da literatura, ao concluir a obra cujo título bem representa a periferia de nossas capitais em mais uma noite sem lei: O coração das trevas.

Escreveu Joseph Conrad, no capítulo derradeiro: “O horror, o horror.” Palavras que tanto se aplicam ao escândalo sem precedentes desta semana quanto ao escândalo sem precedentes que, com certeza, será descoberto na seguinte.

* juiz federal, diretor cultural da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs)



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