Mia Couto e as veredas brasileiras



Num mundo freneticamente comunicativo (e de policialesca combatividade), quem descuida da língua pode conhecer a ignomínia.

A presidente Dilma, falando a uma platéia simpática, teria resvalado na terminologia: usou portadores de deficiência em vez de pessoas com deficiência. Recebeu uma estrondosa vaia.

Quanto exagero que há, pensaria o Burrinho Pedrês. Se levássemos vaia toda vez que nos equivocamos quanto ao nome ou à forma de tratamento de alguém, o “u” seria a vogal mais frequente do idioma. Felizmente, nas relações pessoais a fraternidade e a tolerância ainda se sobrepõem à suscetibilidade dos egos.

No espaço público, porém, acontece conosco algo semelhante a quando estamos dirigindo nossos automóveis: ficamos impacientes, intolerantes, agressivos. Os mesmos gentlemen que disputam a elegância de permitir a outro entrar antes no elevador, nas ruas, tornados furiosos e velozes, atiram seus aparelhos sobre os alheios na encarniçada e invencível corrida por melhores posições.

Embora sejam o instrumento mais preciso de comunicação que a humanidade produziu, as palavras permitem um largo espaço de interpretação. Falar não é preciso. Quando ouvimos alguém, tratamos de entender o que pretende nos transmitir. E o diálogo prossegue. Se, ao contrário, só admitimos a forma que consideramos ideal, o diálogo se rompe. É a recusa à fala do outro. É a negação da sua palavra.

Já se pensou que a palavra tivesse o poder mágico e único de representar a coisa. Si (como el griego afirma em el Cratilo) / el nombre es arquetipo de la cosa, / en las letras de rosa está la rosa / y todo el Nilo em la palabra Nilo. Mas nem a palavra tem poder sobre a coisa, nem tem a exclusividade da sua expressão.

Mia Couto, escritor moçambicano que bem palestrou no Fronteiras do Pensamento, defendeu a liberdade do processo linguístico, postulando a independência da palavra diante do arbítrio onipotente de (alguns de) seus usuários. Contou que ao chegar a um hotel, no nordeste brasileiro, situado próximo a uma favela, disse a uma agente que gostaria de conhecê-la (não a agente, a favela); ela, considerando que se tratasse de um inapto ao manejo do idioma, advertiu-o que não usasse o termo “favela”, pois era pejorativo. Deveria dizer: “periferia socialmente desfavorecida”. (Perdoai-a, Senhor, ela não sabe o que diz!)

O nome não é arquétipo da coisa, nem a mudança do nome é capaz de melhorá-la. Creiamos na palavra; mas não tanto.

Um hipotético filho de Mia Couto que resolvesse fazer vestibular no Brasil, entre o sim e o não, se declararia afrodescendente. A agente (de novo ela), olhando aquele jovem de prováveis olhos e cabelos claros, trataria de adverti-lo. Ele insistiria. Ela o denunciaria à polícia por declaração falsa.

Viver é muito perigoso!

O refrão de Guimarães Rosa não deve causar espanto a Mia Couto, que viveu a luta de libertação de Moçambique. Mas que as pessoas daqui ainda se qualifiquem como afrodescendentes, tantos anos depois da imigração africana, deve-lhe parecer pelo menos curioso.

Roberto Schaan Ferreira, juiz federal (Prêmio Açorianos de Criação Literária 2011)



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