Suprema hipetrofia



O advento da Constituição Federal de 1988 propiciou graves discussões a respeito do papel a ser desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal. Apanhou, na oportunidade, uma geração de juristas adeptos da maior contenção judicial possível. Passados os anos, em substituição àqueles, foram empossados julgadores, por que filiados aos novos ensinamentos do Direito Constitucional, mais simpáticos ao protagonismo judicial. A partir de então, matérias candentes foram deliberadas pela corte, por vezes antagonizando disposições legislativas expressas.

Nada mais desejável, especialmente quando observadas experiências constitucionais estrangeiras mais recentes, como a alemã, a espanhola e a portuguesa, ou mesmo a estadunidense, já historicamente sedimentada e com contornos peculiares. No Brasil, entretanto, a Constituição inovou, com indícios de que o fez de forma precipitada, o que tem ensejado sensíveis distorções no sistema político-constitucional. Estabeleceu mecanismo híbrido, ao mesclar propriedades dos sistemas europeu e norte-americano, e, na pretensão de ter gerado algo original e apropriado às especificidades nacionais, é provável que haja parido algo disforme e propiciador de conflitos institucionais. O problema é o alto conteúdo concentrador. Ao invés de distribuir equilibradamente as deliberações estatais, transferiu a decisão de praticamente todo e qualquer conflito ao Supremo.

Curioso é que há pouquíssimas referências a esse processo de condensação política. Inversamente, o julgamento do chamado caso “Mensalão” tem estimulado a noção comum de que o Supremo é o último bastião moral do país, e que, por isso, seria legítimo despejar sobre ele a resolução do maior número de casos possíveis. Está então autorizado não apenas pela Constituição, mas também pela opinião pública, a decidir desde a questão de alta importância nacional até a conveniência do cruzamento de um poodle com um chihuahua. E quem diz se deve ou não julgar é o próprio Supremo.

Note-se, por exemplo, que há centenas de causas com “repercussão geral”, ou seja, aguardando definição do Supremo, para que somente então milhares de ações a elas relacionadas possam enfim ser julgadas pelos demais órgãos do Poder Judiciário. Singela comparação entre o número de causas que o Supremo entende impelido a julgar e aquele a que se submete a Suprema Corte norte-americana ou tribunais constitucionais europeus remete inequivocamente à conclusão de que algo está errado.

Para corrigir essa desfiguração da harmonia e equilíbrio entre os Poderes seria necessária profunda reforma constitucional – para a qual parece haver quase nenhuma disposição política – mediante consistentes alterações de competência. Poder-se-ia cogitar de atribuir ao Supremo tão somente o controle de constitucionalidade, reservando-lhe a função única de guarda da Constituição, a exemplo das cortes constitucionais européias, suprimindo ou reduzindo atribuições outras, em especial às relacionadas aos julgamentos decorrentes de foro privilegiado. Certamente encampar alterações desse nível seria por demais complexo, por compreender assuntos bastante controvertidos e relacionados a outros princípios constitucionais. Mas algumas modificações pontuais poderiam ser adotadas a fim de evitar o encorajamento da hipertrofia.

Uma delas é o mandato temporário de ministro. De há muito o Supremo deixou de ser o ápice da carreira judiciária. As exigências para investidura no cargo dispensam o prévio exercício da magistratura, razão pela qual a garantia da vitaliciedade, neste caso, poderia ser arrefecida. Essa sistemática propiciaria o avanço da jurisprudência em conformidade às rápidas transformações sociais, além de proporcionar a composição mais variada da corte em atenção aos variados segmentos da sociedade. Atualmente é possível que a atividade de ministro seja exercida por toda uma vida pública, bastando que na posse o indicado tenha trinta e cinco anos. Apenas com o dobro da sua idade estará obrigado a deixar o cargo, isso se não for alterado o limite etário de setenta anos. Praticamente duas gerações estariam submetidas ao pensamento desse hipotético julgador.

A questão, por certo, é intrincada. Refere-se a estruturas institucionais estabilizadas ou em franco processo de solidificação. Não se deve esquecer, porém, que existem para e em favor do Estado Democrático de Direito. Quando deixam de servir a esse propósito é por que se pode estar na iminência de uma crise política. Por vezes, simplesmente aguardar que as melancias assentem na carroça pode determinar o apodrecimento daquelas ou a imprestabilidade desta.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal



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