A insustentável leveza do império



É claro que pedir coerência a uma nação é pedir demais. A diversidade incongruente é nota inevitável dos corpos complexos. O que dizer de uma nação enorme e diversa como os Estados Unidos da América. Mas inúmeros episódios dessa nação são permeados por uma estrutura ética que faz suspeitarem até os desavisados.

Uma pequena notícia, tempos atrás, informava que, num desses ataques informais que as forças americanas fazem em diversas partes do mundo (sem respeitar soberanias, espaço aéreo, território), um membro da Al Qaeda havia sido morto. Essa, na verdade, não era a notícia. A notícia é que havia protestos nos EUA pela falta de um julgamento adequado, já que o executado, além de membro da Al Qaeda, seria cidadão americano, como depois se revelara. Quer dizer: os estrangeiros podem ser mortos sem critérios; os nacionais não.

Outra notícia: a respeito de torturas em um prisioneiro de Guantânamo, estrangeiro, que, por um golpe de sorte, depois de anos conseguira ser levado a um tribunal em território americano e inocentado por inexistência de qualquer indício de envolvimento com terrorismo. Um oficial americano declarava: não fora torturado; apenas submetido a simulações de afogamento. Em um país que pune gravemente as variadas formas de importunação (assédio), é curioso que forçar alguém, contra sua vontade, provavelmente amarrado, a ficar com a cabeça dentro d’água ou de um saco plástico até que a morte se avizinhe receba uma classificação tão branda.

Eis a ética do império: uma lei para nós, outra, ou nenhuma, para os outros; democracia para nós, violência para os estranhos. A ética que exterminou os índios (inclusive com doação de cobertores contaminados com varíola), os filipinos (como disse um senador americano da época: “They never rebel in Luzon any more because there isn’t anybody left to rebel.”), que testou a bomba em Hiroshima e Nagasaki quando a guerra já acabara (Philip Jenkins, A History of the United States, p. 229). A ética do desprezo ao outro, ao estranho, ao ‘inferior’.

(Enquanto isso, nós aqui neste sul vemos os argentinos, uruguaios e paraguaios cometendo infrações de trânsito impunemente porque o prazo para o recurso os encontrará já em suas pátrias, confortavelmente fora do alcance do Estado brasileiro. Essa observância ao direito do estrangeiro é de nos encher de orgulho. Ou seria mera esculhambação?)

Mas voltando à vaca fria, impressiona que outros países igualmente poderosos não se oponham com firmeza às tropelias americanas e antidemocráticas. Será que o mundo suporta essa insustentável ética? E por que será que o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, que ousou expor a hipocrisia das nações, hoje está alijado do mundo, homiziado na embaixada equatoriana em Londres?

Roberto Schaan Ferreira, juiz federal (Prêmio Açorianos de Criação Literária 2011)



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