O bardo e o fardo



Está em andamento o concurso para preenchimento de cargos da juiz federal substituto do Tribunal Federal da 4ª região. Ultrapassada a fase da prova objetiva, os candidatos que permanecem concorrendo serão agora chamados a demonstrar sua habilidade na construção de sentenças cíveis e criminais, e na resolução de questões dissertativas, demonstrando inclusive conhecimentos de Sociologia e de Filosofia do Direito, de Psicologia Judiciária e de Teoria Geral do Estado. Os que ultrapassarem esta difícil etapa deverão ainda participar da prova oral, ocasião em que serão sabatinados pelos membros da banca examinadora, para só então ser conhecida a nominata de aprovados.

Poderia se dizer que o pequeno grupo de aprovados ingressará nesta carreira em dos seus momentos mais difíceis, em que a falta de reajuste salarial e de reconhecimento social soma-se ao truncado diálogo com os que exercem, efetivamente, o Poder. Poderia se dizer também que estes novos magistrados federais não terão a garantia de uma aposentadoria integral, que lhes será entregue uma carteirinha de plano de saúde em que consta o direito a “acomodação coletiva” e que serão enviados a municípios sem muitos atrativos, em que deverão permanecer inclusive nos numerosos finais de semana de plantão.

Poderia ser discutido tudo isso, aprofundando-se cada item e inquirindo-se as razões mais profundas deste estado de coisas, mas muito já foi escrito sobre o assunto, em vários veículos e em diversas ocasiões, de forma que não é objetivo desse artigo desestimular o potencial candidato a juiz federal. Apesar do ofício de julgar o comportamento alheio ser considerado por muitos um fardo, a carreira ainda é boa e traz satisfação, apenas passa por um mau momento. O objetivo deste artigo é, ao contrário, mensurar o impacto da exigência da chamada “Formação Humanística” sobre os atuais e futuros candidatos a juiz.

Considerando a dificuldade imensa de julgar a conduta do semelhante, conhecimentos mais genéricos de humanidades são muito bem-vindos, mas pergunta-se: e os candidatos que não tiveram como buscar por conta própria conteúdos que deixaram de ser ministrados no Ensino Médio, ou na própria Faculdade de Direito? Terão tempo, às vésperas dos exames, para inteirar-se das lições de Filosofia, Sociologia, Ciência Política e Psicologia, pressuposto incontornável para entender-se as projeções específicas destes ramos do conhecimento sobre a ciência jurídica? E, ainda que encontrem este tempo, uma imersão superficial será suficiente? Apesar de mecanismos de busca como o google – este provedor de sabedoria instantânea – e de todos os avanços tecnológicos, dados e informações esparsas apenas se transmudam em conhecimento efetivo depois de sua assimilação sistemática e de alguma maturação. Conhecimento sólido é que nem o vinho de guarda: um repouso mínimo é essencial.

Assim, no instante de rebater um argumento ou na ocasião de redigir uma peça urgente, a internet não nos será de grande valia. O que poderá acorrer em nosso auxílio é o conhecimento adquirido pelo mesmo caminho já trilhado pelos grandes gênios, de Sófocles a Dostoiéviski: leitura atenta, retenção dos tópicos principais pelos processos da memória e integração gradativa do conhecimento novo ao acervo intelectual já existente.

O que deve ser questionado, assim, é a ausência dos grandes textos formadores na época da nossa formação secundária e superior, quando são construídos os alicerces do edifício intelectual que carregamos por toda a vida. Quanto tempo de elaboração é suprimido de um candidato ao cargo de juiz pela apresentação tardia dos grandes cânones do pensamento ocidental, quantas ilações, percepções e conexões são sonegadas ao acadêmico de Direito que passa ao largo de Antígona, Hamlet e Crime e Castigo? Direito, vale sempre lembrar, não é apenas uma coisa que se sabe, mas também uma coisa que se sente. Daí a expressão sentença, do verbo latino sentire; daí a palavra acórdão, a simbolizar o conhecimento que passa pelo coração.

E o resto? Bom, ouso aqui contrariar o bardo. O resto não seria só silêncio. É também alguma resistência, alguma altivez de espírito. E muita, muita esperança.

* juiz federal, diretor cultural da Ajufergs



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