Carta para um jovem magistrado



Prezado ou prezada colega recém ingressado na carreira, seja federal, estadual, trabalhista, militar ou eleitoral, permita-me algumas considerações sobre recentes declarações do Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa. Serei breve. Tampouco pretendo polemizar. Procuro apenas provocar sua reflexão e lhe passar uma mensagem.

Inicialmente esclareço que o jovem do título nada tem a ver com a sua idade, mas com o fato de você ainda não estar suficientemente familiarizado com a magistratura. Parto do pressuposto de que você não conhece muito bem o histórico dessas “justiças”. Se eu estiver equivocado, por favor, dispense a leitura deste texto. Outra coisa. A base territorial da minha argumentação é aqui o Rio Grande do Sul. Não se trata de bairrismo, mas por que, aqui nascido e aqui vivendo, conheço melhor meu rincão.

Você deve lembrar que o Presidente do STF mencionou que nós teríamos mentalidade “mais conservadora, pró status quo, pró impunidade”. Não se comova com essa declaração. É provável que o ministro pretendesse dizer coisa diferente. Ou que suas palavras tenham sido distorcidas. Sabe como é. A velocidade da mídia é diferente da dos juízes. Incompreensões de parte a parte acontecem. Não acredito que, sem apresentar qualquer embasamento, o ministro, a partir de problemas concretos, tenha generalizado.

Que há juízes conservadores, quando não reacionários, é fato. Assim como há carteiros, médicos, professores, industriais, motoristas de táxi conservadores. E se os há, não há qualquer fundamento que autorize considerar que toda uma categoria o seja. E, até onde eu saiba, ideologia conservadora não é óbice ao exercício da judicatura. Agora, confesso que não sei o que é ser “pró impunidade”. É ser garantista? É exigir provas cabais para impor uma condenação?

Voltando ao nosso rincão, queria lhe dizer o seguinte. Nosso Tribunal de Justiça sempre foi considerado um dos mais vanguardistas do país, pródiga fonte de decisões que anteciparam em anos entendimentos que somente agora o STF tem adotado. Por exemplo, a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei dos Crimes Hediondos. E creio que, nesse caso, não se é “pró impunidade”, mas simplesmente contrário a uma excrescência jurídica. Se hoje não mais se nota esse protagonismo do TJRS, pelo menos não de forma tão acentuada, muito se deve à extrema e criticável concentração de poderes do STF.

Nestes pagos, colegas se identificavam com um movimento denominado “Direito Alternativo”. Não sei se você alguma vez cogitou da influência dele na atual e desejável ruptura com o positivismo jurídico. Eu não tenho dúvidas disso. Mais. Na década de oitenta, em Rio Grande, havia um grupo de juízes preocupados com a formalidade e morosidade processual. Inquietos, adotaram algumas medidas que se tornaram o que conhecemos hoje por Juizados Especiais. Um mínimo de conhecimento sobre o funcionamento do Judiciário no Brasil sabe a revolução que esses Juizados implicaram. Pergunte ao professor Guilherme Tanger Jardim como foi. Seriam ele e seus colegas “conservadores”? Procure se informar sobre a atuação de juízes como Sérgio Gishkow Pereira ou Hamilton Bueno de Carvalho. Não cito outros nomes por absoluta falta de espaço. Você não é obrigado a concordar com suas concepções jurídicas. Mas duvido que você afirme que sejam “pró status quo”.

Falo agora da minha própria casa. Pela literalidade da Lei, somente cabe a concessão de benefício assistencial àquele cuja renda per capta familiar não ultrapasse um quarto do salário mínimo. Os juízes federais, preocupados com a amplitude da pobreza extrema, com o cunho social da atuação jurisdicional e com a efetiva proteção constitucional de pessoas em situação de miséria, flexibilizaram esse requisito. Seriam esses magistrados “conservadores”? Retomo a questão de ser “pró impunidade”. Pois começou pela Justiça Federal a adoção de medidas concretas com a finalidade de coibir o crime de lavagem de dinheiro. Também daqui partiram julgamentos mais rigorosos relacionados à sonegação de tributos. Coincidentemente, por criação jurisprudencial do próprio STF, basta ao sujeito pagar o que sonegou para não existir mais crime. Não importa dizer quem está certo ou errado, só gostaria de saber de você se os juízes federais devem ser considerados “pró impunidade”?

Vou citar somente outras duas referências. Poderia registrar inúmeros outros, mas falta espaço. Vladimir Passos de Freitas é internacionalmente reconhecido como autoridade em Direito Ambiental, enquanto Roger Raupp Rios é consagrado defensor dos direitos dos homossexuais. Seriam eles progressistas em seus trabalhos acadêmicos e “pró status quo” na atuação jurisdicional? Ou a atividade jurisdicional reflete suas posições de vanguarda?

Ou seja, jovem colega. A mensagem, em síntese, é: não esmoreça. Orgulhe-se do seu cargo. Sedimente sua carreira com independência e dignidade. Exemplos a seguir há aos borbotões. Não são apenas aqueles aqui mencionados. Deixo de citá-los por falta de espaço. Precisaria de uma edição inteira deste jornal, possivelmente várias. E se um dia você cruzar com o Ministro Joaquim Barbosa pergunte-lhe sobre suas declarações. Se ele responder que de fato afirmou o que foi publicado, entregue-lhe, por favor, esta carta.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal



ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO RIO GRANDE DO SUL
Rua Manoelito de Ornellas, 55, Trend City Center - Torre Corporate, sala 1702, Praia de Belas - Porto Alegre, RS, CEP 90110-230.
(51) 99965-1644
ajufergs@ajufergs.org.br