Elogio da mediocridade, ou Felipão em "Os Fracos Morrem Primeiro".



A imprensa noticiou que Luis Felipe Scolari teria afirmado, ao assumir o comando técnico da seleção, que quem não quisesse pressão que fosse trabalhar no Banco do Brasil. Algo como: aqui é a terra dos fortes; os fracos não têm vez. (Deixe-se de lado, assim, a referência específica, inclusive porque no BB há muitíssimas pessoas competentíssimas, dedicadas e talentosas, e fiquemos com o raciocínio que subjaz.)

Os grandes empresários, os grandes artistas, os grandes políticos, os grandes jogadores de futebol, os grandes técnicos, enfim, os grandes assumem, às vezes, esse ar olímpico de donos da pátria e donos da ética, valorizando talvez excessivamente o status que alcançaram, como se apenas suas fossem as tensões e os méritos, e carregassem a pátria nas espaldas, pesada dos medíocres que vêm de arrasto. Entretanto, não lhes faltam mandaletes, não lhes falta quem lhes quebre um galho, lhes faça um favor, lhes dê um presente, lhes pague passagens de avião e quem lhes facilite as coisas (às vezes tão complicadas para os anônimos desconhecidos). Além da exorbitância financeira, que compra quase tudo.

Sem negar-lhes méritos, é preciso observar que também os medianos sofrem tensões e cobranças. Nem sempre posam de estressados, de cheios de ocupações relevantes para a humanidade, mas experimentam a luta pela sobrevivência física e social, administrando, às vezes, a carência, encarando as próprias limitações, num combate equilibrado e duro. Não são considerados “protagonistas”, mas protagonizam a si mesmos, e o seu desafio é ganhar, não um jogo de futebol, mas a vida.

Já os agraciados pelo destino, os que nasceram com o umbigo virado pro chão (Ponciano de Azeredo Furtado, O Coronel e o Lobisomem), esses estão muito além desses embates mundanos.

Ah, mundo tão desigual! (Ah, mundo neoliberal!)

Houve reprovações à indelicadeza do novo técnico da seleção. A arrogância, a vaidade, a soberba, cevadas em anos de desmedida remuneração, o teriam levado, pensou-se, a desdenhar das profissões modestas e das pessoas que as exercem, como se a baixa remuneração gerasse falta de responsabilidades. Que pressões, chegou-se a argumentar, acometeriam uma pessoa que recebe quinhentos mil, um milhão por mês? E que, se perde o cargo, recebe muito mais? (Treinador é um sujeito que vale muito mais demitido do que contratado. E não demorará dois meses e estará recebendo um polpudo salário novamente, na dança das cadeiras que é a profissão, com mais cadeiras do que candidatos.)

Entretanto, relendo o conto Tres versiones de Judas (Jorge Luis Borges), intuí a verdadeira intenção de Scolari. Um estudioso (Nils Runeberg) exalta a essencialidade e a virtude de Judas no episódio da traição a Cristo, sua abnegação em cumprir uma tarefa tão ignominiosa em nome da glória do Senhor, e sua resignação ao escárnio eterno que o acompanharia (e o acompanhou).

Pois cogito que também Scolari tivesse uma intenção sub-reptícia exatamente oposta ao que dizia. Desejava expor o contraste cruel, o abismo ético que há entre uma remuneração que permite comprar, por mês, um ou dois bons apartamentos e a das gentes que lutam ombro a ombro com a vida, às vezes ganhando, às vezes perdendo. E o fez para a indignação de todos, que veio, e com algum sacrifício pessoal.

Louvado seja!

(Post scriptum: alguns meses depois, e alguns jogos da seleção, vejo que por outros motivos também calha esse elogio à mediocridade e a suspeita de que “morreremos primeiro”. Mas isso é futebol.)

Roberto Schaan Ferreira, juiz federal (Prêmio Açorianos de Criação Literária 2011)



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