Vista eterna para o mar



Em 2004, quase quarentão, comprei uma casa na praia. Minha primeira. Era um sobradinho singelo, funcional, sem gás encanado ou refrigeração, internet wireless ou TV a cabo. Era uma casa da praia tal qual a dos anos 70, em que o principal atrativo da casa da praia era... a praia!

O sobradinho possuía, entretanto, uma característica que considerei irresistível: localizava-se à beira-mar. Bastava atravessar a rua que o marzão se espraiava a frente, infinito até a costa meridional da África. Dele podia-se fazer algo com que sempre sonhei na minha infância, abrir a janela e ver o azul do mar, ainda que o Atlântico por essas paragens adquirisse matizes nem tão fotogênicas. A sacada tinha uma vista de 180 graus destas cores cambiantes – por vezes para os cinqüenta tons de marrom a que estamos acostumados ao sul de Torres. Era ali que, depois do almoço, eu me refugiava com meus livros, aguardando o entardecer para o banho de mar. Minha filha mais velha, na época pouco mais do que um bebê, às vezes me acompanhava nestas incursões vespertinas – o horário de verão garantia o pôr do sol para as oito e tanto.

Na minha ingenuidade, quis propiciar a minhas filhas algo que não tive na infância ou adolescência. Um cantinho na praia para se chamar de seu. Um local onde se pudesse deixar a bicicleta antiga – depois de ganhar a nova no Natal – e passar os meses de férias escolares ( nos inesquecíveis anos 80, quem “passava por média” adquiria o direito de vagabundear da segunda semana de novembro até o início de março), entre paqueras e amigos. Não queria submetê-las a um ritual a que me obrigava a cada temporada – perscrutar novas companhias em cada balneário a que era levando pelas circunstâncias familiares e pela conveniência dos aluguéis. Meus pais se esforçavam ao máximo, mas às vezes o veraneio transcorria entre dunas e lagoas em um local distante demais até mesmo para os “dindinhos” que faziam a rota metrópole-colônia ( ou seja, entre capão da canoa e as praias do entorno – eram tempos em que Xangri-lá recém emancipava-se).

Por tudo isso, instalei-me no sobrado como quem finca a bandeira no cumbre do mais alto pico: a segunda residência era um sonho impensável quando eu iniciara minha trajetória profissional, desprovido de qualquer patrimônio, quase vinte anos antes. Deste cantinho privilegiado com vista infinita para o mar - pensei então - eu não arredo pé. Neste mundo de finitudes, tenho cá meu quinhão de eternidade. Daqui eu não saio, daqui ninguém me tira.

Aos poucos, entretanto, a vida vivida foi sobrepujando a vida sonhada. A prefeitura de Xangri-la, após adonar-se do direito de cobrar mais um tributo (contribuição para a iluminação publica), abandonou a beira-mar da praia do Remanso às escuras, com cinco lâmpadas queimadas nos seis postes mais próximos. A água formava um poço profundo na esquina, e a praça que prometeram nunca saiu do papel – apesar de terem acabado com o campinho de futebol que improvisamos na área. Os buracos na pavimentação passaram a reunir-se para comícios que findavam apenas às vésperas das eleições, e só o carnê do IPTU tinha data certa para chegar – reparos básicos eram sempre postergados para a semana seguinte. O vento parecia aumentar veraneio a veraneio, e o roer incessante da maresia não dava trégua a eletrodomésticos e outros equipamentos – todo inicio de ano havia baixas fatais entre disjuntores, tomadas e duchas.

No final do ano passado sofremos um furto muito estranho – apesar da empresa de segurança que nos acompanhava há oito anos. Eu já evitava visitas ao litoral nos meses de menor movimento, mas com o esvaziamento da beira-mar até mesmo dezembro e março passaram a serem épocas de risco crescente. Minha família tornou-se temerosa, e eu lhes dei razão: por que manter uma segunda casa que só pode ser aproveitada 2/12 do ano?

Acabamos nos mudando para um condomínio de moradias contíguas, de sobrados tão justapostos que um surto de peste bubônica – daquelas que assolavam a Europa em tempos idos – nos exterminaria a todos em poucos dias. O sobrado antigo entrou no negócio pela metade do preço, o resto financiei em não tão suaves prestações. O inusitado de tudo isso – e o que me impulsiona a cometer este escrito – é a convicção de ter feito um bom negócio entregando uma residência à beira mar, maior, por outra, menor, incrustada entre trezentas, custando o dobro e a onze quadras da praia.

Estranha municipalidade esta, que ao negar a mais básica infra-estrutura aos veranistas verga as nossas convicções com a intensidade do vento nordeste. Nosso sobrado a beira mar, como o amor do poetinha Vinicius, foi eterno enquanto durou. Que o IPTU majorado que passaremos a pagar à “capital dos condomínios”, como o município de Xangri-lá se auto-intitula, sirva para tornar mais amenos nossos próximos verões longe do mar.

Marcel Citro de Azevedo é juiz federal e diretor cultural da AJUFERGS.



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