Um passo pequeno para frente, outro grande para trás



Com a promulgação da Emenda Constitucional n. 72/2013, o Brasil finalmente acaba com a injustificável subcategoria dos empregados domésticos, antes alijados de diversos direitos assegurados aos demais trabalhadores. Parece se encerrar, definitivamente, um ciclo histórico que ainda nos remetia à época colonial. Infelizmente, apenas parece, por que em nosso país um avanço aqui importa em recuo acolá.

Antes da Emenda, privilegiávamos um modelo cujas origens remontavam à casa grande e à senzala. Tinha lá sim o empregado doméstico seus direitos, mas não era de fato e de direito um trabalhador como os demais. Acordávamos cedo e o café da manhã já deveria estar pronto na mesa posta. Deitávamos tarde, mas sempre ainda restava alguma tarefa a incumbir o doméstico antes dele próprio dormir.

De qualquer modo, o núcleo preconceituoso que permeia as relações entre patrão e empregado doméstico, embora abalado, ainda deve permanecer sólido. O afeto lançado num momento ao “quase membro da família” cede terreno ali adiante para o assédio moral manifestado na exata temperatura dos humores do empregador. Sempre fica claro quem manda e quem obedece. No interior da casa grande é até aceitável o esporádico e incerto afago ao “quase membro da família”, mas na rua tem que ser categórica a relação de poder. A distinção de status precisa ser visível. Basta visitar alguns shoppings, o uniforme das babás a comprova.

Obviamente que qualquer generalização é incabível. Temos lá as exceções. São muitas. Mas é disso mesmo que se tratam, de exceções. A regra está descrita acima. Ou pelo menos se procurou descrever. Inconformado com essa despretensiosa descrição, o leitor pode buscar fontes muito melhores. Recomenda-se começar com Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Para quem não pretende se aprofundar muito, é interessante assistir a uma preciosidade que passou pelos cinemas – claro que, como toda preciosidade cinematográfica, quase que “silenciosamente” – chamada “O Som ao Redor”. Para bom entendedor, um filme é suficiente.

Há também a preocupação, que certamente não depõe em desfavor dos direitos trabalhistas ora reconhecidos, relacionada ao fenômeno econômico advindo desse reconhecimento. A assunção de direitos implica custos, os quais podem se tornar insuportáveis para alguns empregadores, resultando em demissões ou o ingresso da relação na ilegalidade. Não se quer afirmar que esse desdobramento comprovaria a corrente contrária à Emenda Constitucional. De forma alguma. Mas sim que o estado não capitaneou medidas que pudessem amenizar esses efeitos. Outra vez a História ensina. Quando da abolição da odiosa escravatura, não foram adotadas políticas para plena integração dos escravos na dita “sociedade civilizada”, o que determinou o surgimento de segmentos sociais que permanecem excluídos até hoje.

Bem, o passo à frente, ainda que tíbio, foi dado. É preciso avançar mais. Mas e o passo atrás? Rapidamente que o espaço está terminando. Muito já se falou e escreveu sobre o Deputado Federal Marco Feliciano. Numa democracia, o sujeito deve ter assegurado o direito de manifestar suas opiniões, por mais absurdas que sejam. Mas colocar um cidadão com idéias preconceituosas acerca de minorias à frente de uma Comissão de Direitos Humanos cuja atribuição é exatamente a defesa dessas minorias é desfaçatez. Meu receio é que ao invés de responsabilizar a Câmara dos Deputados pelo equívoco, a opinião pública direcione seus canhões a Feliciano, tornando-o um mártir. Seria recuar demais. Em vários sentidos.

Gerson Godinho da Costa
Juiz Federal



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