A medida da dignidade



A dignidade da pessoa tem sido invocada em múltiplas e diversas situações. A Constituição Federal a institui: O República Federativa do Brasil ... tem como fundamentos ... a dignidade da pessoa humana ... (art. 1º, III). Talvez até a expressão “dignidade da pessoa” possa abranger todas as garantias desejáveis no estado atual da civilização: liberdade, segurança, educação, integridade, respeito, etc. Tudo isso se supõe para que a pessoa seja materialmente digna. Até a alegria, talvez, seja uma dimensão da dignidade.

Mas, se tudo é dignidade, nada é dignidade. Ou melhor: se a dignidade se mostra de formas tão variadas e com conteúdos específicos a outras entidades (liberdade, segurança, integridade física), então ela em si não tem um papel muito claro. Vale a pergunta: o que é específico, exclusivo da dignidade?; o que só a dignidade protege?

Pois eu (pasmem todos) não sei a resposta. Porém (alegrem-se todos), tenho uma historinha a contar em que acontece, acho eu, uma violação estrita da dignidade.

Em uma comunidade remota houvera um violentíssimo aumento no preço das passagens de transporte público. Houve reações violentas, manifestações do povo (nem sempre comedidas), nas redes sociais houve campanha contra o aumento e, como sempre ocorre, porque se estava numa democracia, falou-se mal dos envolvidos no aumento. Até uma ação judicial houve, que acabou por fazer voltar, pelo menos temporariamente, o preço a um patamar menos revoltante. Tudo resolvido?

Não!

Ocorre que, entre os milhares que se pronunciaram no facebook, havia uma modesta cobradora de ônibus de uma das empresas favorecidas pelo aumento. Uma pessoa que ganhava a vida (a modesta vida) andando de ônibus pra lá e pra cá, no inverno e no verão, na alegria e na tristeza, recebendo o dinheiro dos passageiros e dando-lhes o troco, ou recebendo tíquetes e por aí afora. Pois essa pessoa foi simplesmente demitida! Por justa causa! Sem aviso prévio, sem liberação do fundo, sem indenização, sem... E a causa justa era justamente ter posto em dúvida a honorabilidade do prefeito.

Mas é isso, ainda, o que nos interessa.

Dias depois veio a notícia de que a cobradora seria reintegrada. Desde que se retratasse! Quer dizer, volte lá e faça uns elogios ao prefeito, ou, pelo menos, diga que se enganou, que estava falando de um prefeito de antigamente ou de outra cidade, ou (como gostam de dizer as crianças) que estava brincando de dizer o contrário.

Que situação patética. Obrigar uma pessoa a mudar de opinião em nome de manter o emprego.

Por que, me pergunto, não veio, em vez dessa, a notícia de que o prefeito pedira que relevassem o fato, que não tirassem o emprego de uma pessoa por ter se engajado, ainda que com excesso verbal, num movimento popular legítimo? Por que não se ponderou que obrigar uma pessoa a mudar de opinião em nome de manter o emprego é de um fascismo acachapante e que ninguém deve ser constrangido a vender a dignidade para manter o emprego?

Porém, a notícia real era outra, e veiculava inclusive que a cobradora estava satisfeita com o acordo. Talvez estivesse até feliz. Pudera! Havia recuperado o sustento, o aluguel, a farmácia, o pão, o leite, .... Mas, dentre as felicidades, era uma felicidade rasteira, medrosa, indigna. A felicidade mesma (digna) não combina com indignidade.

Roberto Schaan Ferreira, juiz federal (Prêmio Açorianos de Criação Literária 2011)



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