Pagar impostos: por que dói tanto?



Reza a sabedoria popular que a parte mais dolorida do corpo humano é o bolso. Esta percepção se torna mais acentuada em fins de abril de cada ano: ao desconforto de juntar comprovantes, fazer cálculos e revisar as regras da declaração de ajuste, sempre cambiantes, soma-se a percepção de que a qualidade da contraprestação estatal, em seus mais diversos níveis, segue piorando.

O descontentamento do cidadão com a atividade tributária não é exclusividade do nosso país: estrangeiros das mais diversas etnias a veem como uma restrição desmedida à liberdade econômica, ou algo tão produtivo como secar gelo, dado o gigantismo do estado e as ilimitadas necessidades de financiamento da seguridade social – em alguns países já há menos de dois trabalhadores na ativa para cada aposentado. Na verdade, as raízes do descontentamento privado são profundas e multiseculares.

Historicamente, o pagamento de tributos sempre esteve associado à perda da liberdade. Nos primórdios da civilização, nos domínios da lei do mais forte, os povos vencidos em combate eram submetidos a todo tipo de provação: pilhagem, violência física de diversas ordens, e escravidão perpétua para os sobreviventes. Com o passar do tempo, os vencedores deram-se conta de que não era necessário devastar as aldeias, incendiar as pastagens e dizimar a população adversária; mais profícuo seria mantê-la na posse de alguns fatores de produção e exigir, periodicamente, tributos como contrapartida da garantia da integridade física e da propriedade de uns poucos bens.

Estes tributos eram repartidos entre as tribos vencedoras, que se uniam em torno de um líder comum para objetivos militares. Daí uma das acepções do verbo tributar, qual seja, a de repartir o produto da ação bélica pelos participantes do empreendimento de conquista.

Hoje, o significado da tributação é exatamente o oposto. Ela é avalista da liberdade. Não há de se falar em sociedade complexa, vale dizer, uma sociedade plural que se baseia nas noções de divisão do trabalho e da livre iniciativa, sem que haja uma fonte financiadora não só das políticas públicas que visam ao bem comum mas também do aparato estatal que implementa e administra tais políticas. Neste contexto, são raros os estados que prescindem da transferência de uma parte da riqueza privada para os cofres públicos. E a lógica para tanto é de simples entendimento: se é o estado organizado que garante um ambiente político-institucional que viabiliza o trafico jurídico econômico de bens e direitos, dando suporte às transações entre os particulares e compondo os conflitos que inevitavelmente surgem da arena econômica, cabe a este mesmo estado um naco da riqueza produzida não só para que possa manter, mas também ampliar a rede de proteção àqueles que ficam à margem deste processo.

Sim, porque a liberdade de manejo dos fatores de produção – natureza, trabalho e capital, na sua acepção clássica, mas também tecnologia e capacidade empresarial, em uma configuração mais moderna – acaba comprometendo a igualdade. As pessoas são diferentes, possuem circunstâncias, habilidades e capacidades produtivas diferentes, de maneira que as mais aptas – ou as melhor posicionadas no estrato social – cedo ou tarde acabam acumulando riqueza e fazendo valer seu poder econômico. Cabe ao estado frear os abusos e catalisar a solidariedade indispensável para que não falte o essencial aos alijados da dinâmica econômica. Assume, assim, o tributo mais uma finalidade: a de redistribuir minimamente a renda.

Face às múltiplas funções teóricas do tributo, bem como o seu desperdício prático nos três âmbitos federativos, nasce a dor proverbial a que alude o titulo deste artigo. Dor que se consolida ao percebermos que o naco de riqueza que o estado brasileiro vem se apropriando é grande demais para o retorno obtido em investimentos e serviços públicos. Dor que se fortalece ao constatarmos que há um número constrangedor de políticos que se comprazem em conquistar e manter o poder tão somente para a satisfação de seus interesses patrimoniais. Dor que se espalha ao concluirmos que a punição aos que se valem da junção do poder econômico e político para aprimorar a sistemática de apropriação privada do recurso público é de difícil execução prática, e que encontra aqui obstáculos inadmissíveis em democracias mais evoluídas.

Pagar tributos dói em qualquer lugar, mas no Brasil a dor é disseminada e tenaz, e o tratamento depende exclusivamente do SUS.

*Marcel Citro de Azevedo é juiz federal e diretor cultural da AJUFERGS.



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