Maniqueísmo dialético



Sim, é uma contradição. No maniqueísmo não há diálogo, e na dialética há de haver interinfluência e, assim, estágios relativos (não maniqueístas). Logo, maniqueísmo dialético é uma impossibilidade teórica. Porém, frequentemente é encontrado por aí, especialmente em argumentações sobre assuntos controvertidos.

O fenômeno é o seguinte. O sujeito é chamado a opinar sobre certo assunto. A forma mais corriqueira de defender um ponto de vista é atacar o ponto de vista contrário. Quanto mais absurdo o ponto de vista contrário, mais fácil a tarefa do mainqueísta dialético. Então ele atribui aos adversários um argumento ou afirmativa ou conclusão completamente estapafúrdios. Depois o rebate com grande autoridade e regozijo.

Exemplos pitorescos: a) diante da proibição aeronáutica de construir acima de certa altura até certa distância do aeroporto, alguns argumentaram que, então, os prédios existentes na Bela Vista, no Moinhos de Vento, Rio Branco, etc. teriam que ser demolidos; e b) no debate indigenista quanto à demarcação de reservas, argumenta-se que, a se levar em conta situação original (chegada nas Américas), teremos que devolver todas as terras aos índios.

Ora, convenhamos, tais extremações (maniqueísmos), apesar de facilitarem o contra-argumento, não contribuem para o esclarecimento público nem, muito menos, para o razoável consenso. Apenas servem para, a algum desavisado, dar a impressão de que o maniqueísta dialético é um poço de sensatez e seus oponentes são completamente obtusos. Ainda que, infelicianamente, existam casos reais de profetas do absurdo, isso se deve atribuir à democrática e multitudinária diversidade de um país imenso e vário.

O que há de inconveniente nesse pitoresco mecanismo retórico é que muita gente, por pressa, por inaptidão ao pensamento questionador, por falta de formação ou por mero comodismo, acaba admitindo o inimigo hipotético (aquele paradoxal, estapafúrdio, bronco), temendo-o, e aderindo sem critérios ao pensamento maniqueísta (às vezes não menos estapafúrdio do que a barbaridade contra que se bate).

Pois recentemente nos deparamos com um caso de maniqueísmo dialético histórico. Ao depor perante a Comissão Nacional da Verdade, o chefe do DOI Codi de São Paulo nos idos de 1973, coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, altercando com seus fantasmas, fez a seguinte previsão para o passado: “Não fosse nossa luta, os senhores teriam um regime comunista.”

Ainda que se lamente essa crença (talvez necessária psicologicamente para quem precisa justificar o injustificável), nada digno de grande estranhamento. Afinal, mesmo os acusados criminalmente tem direito ao silêncio, ou, como no caso, levantar as hipóteses que lhe sejam convenientes.

Ocorre que o futuro do pretérito não se realizou. Ou seja, a hipótese levantada esbarra no presente. O próprio coronel se encarregou de demonstrar isso. A um vereador presente na sessão que o acusava de tê-lo torturado, o coronel chamou de terrorista (comunista). Mais: chamou de terrorista (comunista) a presidente Dilma Rousseff.

Raciocinemos: a) Dilma Rousseff é terrorista comunista (premissa coroneliana); b) Dilma Rousseff é presidente da república (fato presente inatacável); c) (dedução) logo, estamos sob regime comunista; d) (segunda dedução) o coronel perdeu a guerra.

Tem alguma coisa errada nisso. Acho que Brilhante e sua turma nos protegeram mesmo foi contra a democracia. Como perderam a guerra (apesar de produzir muitas baixas nas hostes inimigas), a democracia venceu. Amém.

Roberto Schaan Ferreira, juiz federal (Prêmio Açorianos de Criação Literária)



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