A liberdade de cada um



Segunda passada passei por uma situação complicada: dirigia numa avenida na zona sul quando um motorista avançou o sinal e por centímetros não destruiu a lateral do meu carro. Torci a direção e quase bati no cordão da calçada, mas consegui frear a tempo. Quando ergui o braço e reclamei da sua falta de atenção, ele freou com força – de repente, toda sua pressa desapareceu – baixou o vidro e passou a me dirigir uma torrente de palavrões.
Parado estava, e parado fiquei. Não podia responder no mesmo tom porque senão iríamos para as vias de fato, tampouco me intimidar porque ele estava completamente errado. Ficamos os dois ali, nos encarando, ele exaurindo seu repertório de xingamentos ainda de dentro do carro.

Mas não se preocupe o leitor, que essa não é mais uma história policial, muito menos a milionésima crônica sobre a falta de educação no trânsito. Não, o que pretendo aqui é chamar a atenção para situações crescentes em nossas urbes, os episódios de retrocesso civilizatório.

Há vários graus de retrocesso, desde situações extremas como tocar fogo em um assaltado rendido e indefeso até estas pequenas patifarias que amesquinham o cotidiano. Comportamento civilizado significa respeitar os demais membros da sociedade e não importunar estranhos com necessidades estritamente pessoais. É o que nos faz responder “tudo bem” ao cumprimento do vizinho no mesmo dia em que perdemos o emprego ou brigamos com o cônjuge. Comportamento civilizado são convenções, etiqueta, modos, por favor, com licença e obrigado. Civilização, nesse nosso mundo competitivo em que tudo se torna mercadoria, é cada vez mais autocontrole.

O cotidiano civilizado se compõe de inúmeros momentos auto-delimitados, que encontram seu ápice num elevador cheio. Quando a porta se abre, você percebe imediatamente que há gente demais. Será difícil, mas se todo mundo ceder um pouquinho você poderá entrar.

Então, diante de seu olhar suplicante, a mágica começa: o senhor à direita afasta sua valise um pouco mais, o jovem ao lado dele dá um passinho para trás, a mulher à esquerda move-se. Pronto, abre-se um pequeno espaço. Começa a viagem, e ninguém reclama de eventual mal cheiro ou do aperto, das inúmeras paradas ou dos repetidos solavancos. O elevador lotado, muito mais do que um mal necessário, é a metáfora da sociedade: você cede um pouco hoje para que o outro também ceda amanhã, você não incomoda seu vizinho e espera que a recíproca seja verdadeira.

Isso não quer dizer que devemos tolerar injustiças ou abusos, mas sim que a expressão da nossa indignação deve ater-se aos limites do razoável. Protesta-se contra o aumento de passagens e apedreja-se a prefeitura, reclama-se contra o corte de árvores e se bloqueia uma artéria importante da cidade por horas a fio. Eventual justeza na reivindicação se empalidece face a má escolha do método. E a máxima de Voltaire se faz cada vez menos ouvida aqui nestes trópicos: “ a liberdade de cada um termina quando começa a do outro”

Bom, e o epílogo daquele incidente? O leitor que me acompanhou até aqui criou a justa expectativa do final da história, e é razoável satisfazê-la: quando o motorista terminou de despejar a raiva – contra mim, contra o mundo, talvez contra si próprio – eu já tinha contemporizado. Era um sujeito humilde, um entregador numa pick up velha premido pelo tempo e pelas circunstâncias. Consegui perguntar, calmo: “você ainda acha que tem razão?”. Algumas pessoas olhavam a cena, aguardando o desfecho – um desfecho que ninguém estaria disposto a impedir. Seguiram longos instantes de silêncio, até que o sujeito deu a partida e arrancou sem uma palavra a mais.

Atrasado, corri até o dentista onde me deixaram entrar no elevador apinhado sem caretas ou contestações.

Marcel Citro de Azevedo é juiz federal e diretor cultural da AJUFERGS.



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