De árvores e de rios.



Há muito tempo, minha mãe me deu um livro para ler. Chamava-se “Como era verde o meu vale”. Narrava (e narra ainda, porque os livros são eternos) a destruição do vale verde pela exploração de carvão, combustível para o progresso. O carvão negro entranhado nas unhas, nos olhos e na alma das pessoas.

Que preço alto nos cobra isso que alguns chamam progresso!

Atualmente, aqui em nossa república, estamos imbuídos das elevadas responsabilidades de realizar a Copa do Mundo. Não podemos fazer feio. Temos um ano ainda para transformar-nos a ponto de que o mundo não flagre nosso subdesenvolvimento. Temos que tomar a aparência de um alegre país do futebol. Daí, é um tal de abrem-se buracos aqui, arrombam-se avenidas ali, interditam-se passeios acolá, transformando a cidade e o trânsito num jogo aleatório e caótico, na esperança paradoxal de que esse caos, em um ano, se torne uma organizada calmaria, de modo a impressionar os estrangeiros e a FIFA.

Segundo Heráclito de Éfeso, o filósofo da transformação e dos opostos, o conflito é o pai de todas as coisas. Se realmente é assim, talvez estejamos no caminho certo, pois podemos pensar que essa confusão toda há de produzir o seu oposto.

Mas às vezes vale a pergunta: será que não estamos entregando os dedos para ficar com os anéis? Por que cerrar árvores de uma cidade em que muitas vezes as edificações se moldam para preservá-las? Por que a força pública tem que atacar na calada da noite os defensores dessas árvores? E o nosso rio, o maior deles, o mais importante, o rio dos jacus, será que o teremos que entregar suas areias, suas praias, suas árvores em nome do progresso ou das exigências da FIFA?

O mesmo Heráclito também afirmou: ninguém se banha duas vezes nas águas do mesmo rio. As pessoas, os seres, as coisas estão em constante mudança, e, na segunda imersão, já a pessoa e o rio seriam outros.

Essa vertiginosa mutabilidade do mundo, percebida pelos olhos agudos do filósofo num tempo em que mesmo a intervenção do homem sobre a natureza era suave, talvez não impressionem nossos olhos atuais, poluídos de mudanças. Talvez o nosso desafio seja buscar o imutável, e a pergunta talvez seja “o que deve permanecer?”.

O rio entrega suas areias (e junto vão as praias, árvores, aves ...) para as dragas irresponsáveis da ganância descontrolada; as árvores são sacrificadas para que os automóveis passem. Abram alas que a Copa vem aí!

Quando tiver passado a Copa, e a FIFA e os estrangeiros tiverem ido, ficaremos nós em uma enorme quarta-feira de cinzas. As dívidas, as obras inacabadas, a corrupção inacabável agravarão nossa ressaca. Talvez uma caminhada à beira do Guaíba pudesse espairecer. Procuraremos uma baixada onde antigamente caminhávamos entre amarilhos e corticeiras, mas encontraremos um rio de automóveis.

Desenxavidos, voltaremos para casa, perguntando: quem somos, afinal? Talvez nos ocorra um soneto de Augusto dos Anjos (A Árvore da Serra): - As árvores, meu filho, não têm alma! / E esta árvore me serve de empecilho ... / É preciso cortá-la, pois, meu filho, / Para que eu tenha uma velhice calma! // - Meu pai, por que sua ira não se acalma?! / Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?! / Deus pôs almas nos cedros ... no junquilho ... / Esta árvore, meu pai, possui minha’alma!... // - Disse – e ajoelhou-se, numa rogativa: / “Não mate a árvore, pai, para que eu viva!” / E quando a árvore, olhando a pátria serra, // Caiu aos golpes do machado bronco, / O moço triste se abraçou com o tronco / E nunca mais se levantou da terra!

Meio dramático, né? Mas em tudo há a metáfora do que somos.

Roberto Schaan Ferreira, juiz federal
(Prêmio Açorianos de Criação Literária 2011)



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