Relicários



Perguntaram-me, em uma roda de literatura, qual palavra da língua portuguesa eu mais apreciava. Na hora, veio-me à mente a palavra “saudade”. É clichê, eu sei, mas a palavra é bonita, e dizem, só existe com o alcance e o conteúdo a ela atribuído em nossa língua portuguesa.

É, de fato, uma expressão poderosa, de múltiplo alcance. Eu tenho saudade, por exemplo, do tempo que eu era mais idealista, do tempo em que eu acreditava mais.

Hoje, creio em poucas coisas. Apesar da rejeição da PEC 37 ter soprado uma esperança, sou um semicrédulo, se é que existe o termo. Fiquei ressabiado, tal qual muitos outros, ao perceber que as bandeiras que um dia carreguei estavam rotas. Ao dar-me conta da forma como a classe política dominante se vincula aos grandes grupos econômicos que fornecem bens e serviços ao Estado. Criam-se demandas por grandes obras e montam-se licitações de forma a viabilizar rearranjos orçamentários. Se houver urgência, é bom; se for uma urgência urgentíssima, é melhor ainda. As empreiteiras de sempre combinam preços e obtém orçamentos absurdos, e nesta triangulação paga-se campanhas políticas e vinhos caros.

Vinte, vinte e cinco anos atrás já era assim. Só que eu não sabia. Quando soube, achei que as coisas iriam mudar. Com o meu esforço – com o nosso esforço! Seria apenas uma questão de tempo...

Os contribuintes? Estes continuam com a conta em mãos. Também ficam com a conta dos recentes quebra-quebras do patrimônio publico – e do privado – pois é justo que os comerciantes tentem recuperar parte do seu prejuízo incutindo-o no custo das mercadorias

“Justo”, eis o termo. Não respondi a palavra saudade, por que além de ser clichê ela ultimamente tem me assombrado. Escolhi Justiça, porque a palavra é bela tal qual à formosa dama vendada que a representa. Dama que não vê e que também não é vista, diz o povo que brada nas ruas.

Será?

Indagaram-me também qual palavra eu não gostava, que me fazia doer os ouvidos. Esta foi fácil. Corrupção!. O seu significante é horrível, com aqueles dois "r" rangendo os dentes ( uma rápida digressão literária: significante é um termo da técnica lingüística que ressalta a dimensão acústica, perceptiva ou psicológica da expressão. Segundo o saudoso Mário Quintana, com os seus OO de espanto, seus RR guturais, seu hirto H, HORROR seria a própria palavra de cabelos em pé, assustada da própria significação).

Também tenho horror a esta palavra, pois cor-rup-ção lembra justamente " com ruptura", já que demonstra a exata entorse que atinge a confiança do cidadão em seu governo. De fato, ainda que não perpetre uma violência concreta e individualizada, de fazer sangrar, ela agride e violenta, conjunta e silenciosamente, milhões de anônimos. Tal qual um abusador travestido de pai, padrasto ou avô, atinge principalmente as crianças, das quais são sonegadas educação e saúde de qualidade, bem como políticas públicas que poderiam lhes garantir um futuro mais promissor.

No Brasil, corrupção é uma palavra que já vem no aumentativo! Curioso, não é?

A última pergunta era “qual palavra tu achas que deveria ser resgatada?”. Respondi sem pestanejar: Relicário. Linda palavra, raramente usada nestes tempos de pouca fé. É o recinto especial, urna ou cofre, onde guardam-se relíquias. Designa ainda coisa preciosa, de grande valor.

Agora, sou eu quem pergunto ao dileto leitor, já admitindo: não sei a resposta.

Se há alguma coisa no relicário do povo brasileiro, o que é?

Se não há nada, quem somos?

*diretor cultural da Ajufergs e professor de Direito Tributário na Esmafe/RS



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