Judiciário para quem?



Muito se fala em ampliar o acesso ao Judiciário, ideia que deve ser aplaudida e estimulada justamente por visar à concretização dos valores da cidadania e da justiça social. Há, porém, um outro lado nesta questão: quanto mais incondicionado é o acesso à justiça, maior a motivação para se buscar uma pendenga judicial com risco próximo ao zero, postergando-se a satisfação de obrigação jurídica que, no íntimo, sabe-se devida.

No âmbito do direito tributário federal, a que tenho me dedicado nos últimos anos, abundam não só problemas deste tipo – vinculados a uma superdemanda pelos serviços judiciários – mas também aqueles relacionados à eficiência e a economicidade dos procedimentos: Pergunta-se: a proporção risco-custo-benefício para ajuizar uma demanda, seja da parte do fisco, seja da parte do contribuinte, não acaba por desestimular a conciliação/transação e inflacionar a solução judicial em detrimento de outras alternativas que poderiam ser mais baratas para a sociedade brasileira? No ponto específico da execução fiscal, até que ponto o nosso processo administrativo e judicial de cobrança acaba por instar o inadimplemento, induzindo os agentes econômicos a se financiar com os recursos públicos que deixam de ser adimplidos por uma decisão matemática, baseada em probabilidade e estatística?

Explico com um exemplo: determinado tributo que deixou de ser pago e declarado em outubro de 1989 só foi objeto de lançamento em março de 1994. Discutiu-se dois anos em primeira instancia administrativa e quatro junto ao então Conselho de Contribuintes, onde foi deferida uma perícia. Em maio de 2000, portanto, obteve-se a constituição definitiva do crédito tributário, com a propositura da execução fiscal em março de 2004 e citação em setembro daquele ano. Segurando o juízo, a empresa opôs embargos, que ensejaram prova pericial e só foram sentenciados em março de 2007. Da sentença de improcedência houve apelo, negado pela instancia recursal em 2009. O recurso especial não foi admitido, ensejando agravo ao tribunal de Brasília que o negou. O processo retornou ao primeiro grau, e ao determinar a realização do leilão, em 2012, o juiz singular verificou que o bem depositado não foi mais localizado. O depositário simplesmente sumiu com o bem e não respondeu às intimações. Como tornou-se impossível sancionar-se o depositário infiel com a prisão civil, ou ao menos ameaçar-se fazer uso desta medida extrema – que diga-se de passagem costumava surtir algum efeito – o processo está atualmente suspenso esperando que o credor indique outros bens.

Neste processo hipotético, não houve caducidade de nenhum tipo, a cobrança é válida. Todavia, dada a provável desativação da empresa após o transcurso de 25 anos desde o surgimento da obrigação e o sumiço do bem que garantia a execução e do seu depositário-gestor, a chance de adimplemento é próxima a zero.

Este exemplo - cujos dados são similares a um processo real que tramita sob minha jurisdição - bem demonstram o quanto é atrativo do ponto de vista da economia financeira buscar um processo judicial. De fato, no âmbito da execução fiscal abundam defesas protelatórias, atraídas pelo custo zero em litigar e pela demora kafkaniana propiciada pela combinação do processo administrativo de cobrança do crédito com a execução fiscal nos moldes atuais. Há um desestímulo ao bom pagador de tributos, o que atinge a confiança no Estado como agente econômico.

E isso que ainda estamos falando da gestão da receita pública: o recurso indiscutivelmente devido que deixou de atender a sua finalidade orcamentária . Na gestão da despesa publica a situação é sabidamente mais complicada, como bem demonstram as recentes manifestações por todo o país.

Marcel Citro de Azevedo é juiz federal e diretor cultural da AJUFERGS.



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