Django e os gaúchos



Quentin Tarantino (diretor de Django Livre) conquistou sua liberdade. Não cabem juízos de verossimilhança, não cabe perguntar se isso ou aquilo poderia ter acontecido e se teria acontecido assim. Tarantino, assim como Django, é livre para fazer o que quiser. Especialmente, matar gente. O que em outros seriam chavões (como o hábito fatal dos bandidos de protelarem cruelmente o fim do mocinho aprisionado e submetido ao ponto de lhe permitirem fugir), em Tarantino, em vez de um pecado de originalidade, constitui um exercício da ironia.

Sua propensão ao sangue, agora em um ambiente de injustiça histórico-social, nunca foi tão significante. Primeiro, o sangue negro, prodigalizado copiosa e brutalmente, a inspirar e exasperar nossa revolta e nossa ira. Depois, quando o revólver chega à mão de Djando, o derramamento do sangue branco opressor e seus agregados (brancos pobres e negros servis), para regozijo de nossa sede de justiça (embora Django não se dedique exatamente a ser justo.)

Uma passagem recorrente do filme toca especialmente à nossa cultura. O negro a cavalo. No filme, todos (brancos ou negros) se espantam ao encontrarem um negro a cavalo. O cavalo representava liberdade, ou a possibilidade dela, algo inconcebível na cultura sulista americana ás vésperas da guerra da secessão (1861 a 1865).

Aqui em nosso sul, além de outras atividades, os negros trabalhavam como peões de estância, ombro a ombro com brancos (quer dizer, portugueses, espanhóis) e indígenas. Na revolução farroupilha (1835 a 1845), trinta anos antes da guerra da secessão, os negros lutaram, havendo inclusive o famoso e triste episódio de Porongos envolvendo (vitimando) os lanceiros negros. Assim, não só andavam a cavalo como andavam armados. (Para fundamentar sua tese de que a escravidão aqui não fora tão branda quanto se afirmava, Fernando Henrique Cardoso, em Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, enfoca o caso dos escravos domésticos e das charqueadas, que, evidentemente, não tinham a possibilidade de montar a cavalo e ganhar o campo.)

Outro filme que toca à nossa cultura é La Redota – Una Historia de Artigas, de César Charlone. La Redota foi um simulacro de república (um acampamento de guerra) utópica, e Artigas um apologista da igualdade. Numa deliberação do conselho formado por militares, estancieiros, peões, negros, índios, um estancieiro se refere pejorativamente a gauchos. Prontamente Artigas reage: - Acá no hay gauchos! Solo hay paisanos!

Quem diria! Como no Martin Fierro, de José Hernandez, ser gaucho era un delito. Hoje muitos de nós honram-se em ser gaúchos e apreciam ser chamados assim.

Difíceis de prever os trajetos da semântica e da ética. A liberdade de Django a cavalo e a redenção da gauchada são apenas dois pequenos símbolos da mutabilidade, cada vez mais vertiginosa, dos conceitos e dos valores. Que conceito ou que conduta aceitamos hoje que em cinquenta anos será considerada uma aberração ou uma violência?

De qualquer forma, melhor do que a igualação pela violência cumprida por Django é a utopia igualitária artiguista, que redundaria num país dos menos violentos e menos desiguais dessa nossa América.

Roberto Schaan Ferreira, juiz federal
(Prêmio Açorianos de Criação Literária 2011)



ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO RIO GRANDE DO SUL
Rua Manoelito de Ornellas, 55, Trend City Center - Torre Corporate, sala 1702, Praia de Belas - Porto Alegre, RS, CEP 90110-230.
(51) 99965-1644
ajufergs@ajufergs.org.br